Carta de Higino Aires a Agostinho Neto

Cota
0001.000.016
Tipologia
Correspondência
Impressão
Dactilografado
Suporte
Papel comum
Remetente
Higino Aires
Destinatário
Agostinho Neto
Data
Idioma
Conservação
Bom
Imagens
7
Observações

Foi publicado no 1º Vol. de «Um amplo Movimento...».

Acesso
Público

1ª carta: de Higino Aires a Agostinho Neto [dactilografada] Luanda, 22 de Setembro de 1951 Amigo Agostinho Neto Você talvez me não conheça. Nunca tivemos ocasião de tratar um com o outro. Não sei também se o meu tio Humberto, ou o Viriato lhe falaram alguma vez de mim. Mas isso não importa que me dirija a si para trocar consigo algumas opiniões acerca do nosso ambiente social e político, em especial dos nossos meios de REALIZAÇÃO, e finalmente solicitar-lhe a sua colaboração, caso a queira ou concorde prestá-Ia. Penso que já tenha conhecimento que faço parte dos corpos gerentes da Liga Nacional Africana, que me sirvo da literatura para transmitir ao nosso Povo os resultados dos meus estudos sobre os problemas que nos tocam, e que pretendo contribuir com o meu esforço para a resolução dos mesmos. – É por estes factos que lhe escrevo a presente. Como particular amigo que sou do Viriato, tive ocasião de ler a sua carta de há um mês aproximadamente, onde tratava da Delegação da Liga aí em Lisboa, dos desejos que vocês empreendem aí para se realizarem, da independência que querem manter quanto ao pensamento, serões culturais, etc. Notei a sua opinião sobre a Liga, e com a maior sinceridade e independência que me dá a minha idade de 25 anos, e a minha formação tão liberal quanto a própria liberdade, peço-lhe que me escute, e veja se por aquilo que penso, será possível conjugarmos os nossos esforço de mãos dadas, como é necessário que se faça, mas que infelizmente continua por fazer entre todos nós que afinal desejamos a mesma coisa. Cheguei à conclusão, de que os africanos, ou os angolanos no nosso caso, desejam no fundo a mesma coisa, isto é viverem uma vida melhor, pacificamente dentro do seu território, democraticamente, e que essa vida seja desfrutada por todos os indivíduos que constituem a população de África. A nossa discordância tem constado praticamente na consecução deste objectivo, quer dizer: na realização. Até hoje, o mal tem residido na falta de capacidade para a condução da nossa gente para este caminho da felicidade, falta de capacidade dos chamados mentores, que ou se ficaram nos ataques polémicos-jornalísticos, ou nas lamúrias eternas e velhas da falta de união, ou no exibicionismo espaventoso de grandes realizações sociais, fundadas entretanto em completa vacuidade e sem consistência alguma, porque tais realizações sociais não se dirigiram para a massa geral, mas apenas para um número circunscrito de burgueses do nosso meio. Tudo isto, como certamente é do seu conhecimento, produto da evolução normal da nossa sociedade. Porém, o que vejo com temor, é que nós, os chamados jovens de hoje, nos estamos mantendo também no «estudo» e não passamos de peito aberto e mãos nervosas e possantes para a prática das conclusões a que chegamos. Isto é o que vislumbro, pois ainda é cedo para o afirmar categoricamente. Foi por ter chegado a esta conclusão que me meti na Direcção da Liga e conto manter-me lá até perder a confiança na minha capacidade, o que desejo não suceder. E ponho esta estimativa adiante de mim, não devido aos obstáculos e dificuldades, com as quais já conto há muito, mas apenas devido à falta de indivíduos africanos capazes a quem possa juntar os meus esforços. Esta falta de pessoas sãs e capazes e o que me atemoriza, porque ainda não consegui encontrá-las. É voz corrente por cá atacar-se os Vandunens, os Fernandos Torres, e os Sousas, que são os que mais se têm apegado à existência da Liga, por capricho, por brio, por vaidade, ou até mesmo por inconsciência, não interessa por agora, mas a verdade que eu constato, é que esses pseudo-revoltados não passam do falatório. Ainda não os vi organizarem-se e irem para a Liga derrubar aqueles. É muito cómodo e mais cómodo «conversar» sobre as asneiras e patifarias dos outros, mas deixar-se ficar quieto. É o que essa gente tem feito. Eles vêm ainda com mais uma desculpa: Dizem que quando se pretende desalojar os tais Vandunens & Companhia, estes vão arranjar uma carrada de parentes para votarem neles. Não discuto que não tenha sucedido isso nos anos passados. – De resto é legítimo eles defenderem-se, e o Nascimento também foi dono daquilo durante muitos anos – mas esses tais revoltados, se se organizassem, se acompanhassem o cumprimento dos estatutos, se tivessem realmente interesse em vencer, podiam fazê-lo, porque eu agora constato que os tais Vandunens não são nenhuns grandes conhecedores de assuntos sociais que possam fazer frente a quem saiba um bocado disso. E o caso é que eu não tenho aprendido nada de fundamental com eles. Finalmente a última prova de que esses lamurientos não querem é maçar-se, é o facto de eu estar na Direcção da Liga, não sendo da panelinha deles Vandunens. Quer dizer que assim como eu lá estou, estariam outros também que o quisessem. Antes de me resolver a trabalhar dentro da Liga, examinei bem as coisas; nesse tempo estava ainda cá o Viriato, e chegámos a conclusão de que devíamos meter ombros naquilo. Entretanto o Viriato não conseguiu isso porque foi transferido. Do que se tem feito, garanto que redundará positivamente na realização da grande obra por que se anseia: As atenções têm sido dirigidas para o povo humilde, a grande massa que é preciso preparar, para num futuro próximo haver muita gente a pensar por si. As escolas que se pretende pôr a funcionar para o próximo ano; a clínica médica; a cooperativa de consumo, e que será a base para outras cooperativas; o refeitório para os alunos da escola, que não possam ir almoçar a grandes distâncias, ou não tenham grandes recursos de alimentação, tentar-se-á fornecer-lhes ali as refeições por preços ínfimos; o colégio que comportará os mais variados sectores de ensino que seja possível organizar-se, como aulas práticas de dactilografia, de línguas, de lavores, de higiene, de artes e ofícios e até de agricultura, criação de aves domésticas etc., tudo isto a eles é destinado essencialmente. Por isso que se está lançando as bases da constituição de carteiras profissionais, a fim de congregar como sócios da Liga todos os artífices, os clubes de beneficência conhecidos pelos «Órfãos», «Kuria N'gó» e outros, e ainda os folclóricos, enfim toda a nossa gente que tem sido posta à margem embora se fale dela com pena. Este pensamento de auto-estimação, e de aproximação com os nossos irmãos, está já assente entre os presentes dirigentes (e os Vandunens terão pelo menos este mérito) e é neste campo que se tem procurado trabalhar. Tenho notado que a massa não tem correspondido esfuziantemente a este desejo, mas isso é uma desconfiança absolutamente legítima e natural dado os antecedentes, mas que se vence facilmente. Ora, chegou a altura de nós os dois nos entendermos. Como já disse, li a sua carta para o Viriato, na qual manifestava o seu inconformismo em participar da delegação da Liga aí, por causa das directrizes que a mesma teria de seguir, directrizes que o Neto chama de passivas, e calculo que nisto estará uma certa discordância com a colaboração que a Liga vem dando ao Governo. Eu estou certo que é exactamente aqui que presentemente reside o desacordo entre nós os jovens. E é preciso que nos entendamos com urgência. Eu afirmo que é impossível os negros portugueses lançarem-se numa actividade manifesta, em prol dos seus irmãos mais atrasados demonstrando-se ao mesmo tempo desavindos com o governo. Isto é impossível porque seria uma demonstração evidente de que estávamos a lutar contra os interesses de Portugal em África, ou Angola. Haja em vista que os próprios brancos, que pretendem dedicar-se ao reajustamento das virtudes portuguesas, e levar a Nação por um caminho direito, os homens da chamada Oposição, esses mesmos não conseguem vencer. E entretanto são brancos como os outros. Claro está que uma actividade nossa, de negros, destinada a elevar a mentalidade dos negros, é tão mal vista pelos maus do Estado Novo, como pelos tais democratas da oposição. Creio não haver dúvidas da sua parte, que num caso destes, teremos que aguentar tanto o embate dos Estado-Novistas, como o dos Henriques Galvões, Quintões Meireles, Nortons de Matos & Companhia ilimitada. Quer dizer: Nós temos ainda mais dificuldades que a oposição que não consegue levar a melhor. E teremos mais dificuldades, não só porque todos eles virão contra nós, até mesmo estes da Oposição que nessa altura nos negarão os tais direitos democráticos que hoje reivindicam para eles, mas ainda, e principalmente afinal, porque não estamos organizados, não temos um programa, não temos multidão suficiente em quem nos apoiarmos, e não temos multidão porque entre nós campeia a ignorância, a falta de brio e outros predicados que contribuem para a falta de cultura; temos ainda a traição como meio normal e corrente, a intriga, etc. Por tudo isto se conclui, que os negros não estão em condições de se colocarem no campo oposto ao Governo, e RECLAMAR, PROTESTAR, E REIVINDICAR. Não estão em condições, porque a massa não está capaz de compreender e APOIAR os líderes, por isso que os líderes ainda não apareceram a conduzir o Povo, e por isso que a escassez de homens cultos entre nós é uma realidade. Para o Conselho do Governo, para a Câmara Municipal, para a deputação à Assembleia Nacional e outros lugares, temos que recorrer a pessoas que já sabemos inqualificadas para esses lugares, quando não recorremos a próprios brancos. Diga-me pois, amigo Neto: Com uma inferioridade destas, pode-se eficientemente colocarmo-nos, os poucos que somos e sem massa a quem nos apoiarmos, situarmo-nos numa oposição ao governo? Eu acho que não. E não, porque o Governo não tem mãos a medir, faz tudo que lhe apetece e não tem que dar contas a ninguém. Não, porque não há uma massa capaz de fazer uma greve, de desfilar em silêncio e em multidão em frente ao palácio do Governo, em sinal de protesto. Quer dizer que pode ser muito bonito da nossa parte armarmo-nos em revolucionários, em polemistas; podemos ficar com o nome na história, podemos ser muito admirados, e muito depressa registados como «comunistas», mas o que é mais certo, é que com a maior simplicidade desta vida, seríamos desterrados, com a desvantagem de deixarmos o Povo no mesmo estado de ignorância e de miséria. Sendo assim, eu penso que o trabalho a executar neste momento deve ser de elucidação, e de preparação da nossa gente, para se tornarem capazes de compreenderem e acompanharem o futuro líder. É neste campo que se está encaminhando a Liga, e por isso que quero não a deixar, até entrar bem neste caminho. Há que criar o espírito de cultura, a higiene, a noção dos direitos que nos assistem, e a forma de os fazermos vingar, despertar o amor ao lar, à honestidade, ao cumprimento do dever perante os semelhantes, acabar com a criação de «classes» mais importantes e menos importantes entre nós, o combate ao analfabetismo, enfim, juntarmo-nos aos chamados indígenas e ao boçal até, olharmos para os aprendizes de carpinteiros que bem conhecemos, aos contratados das fazendas, aos criados, as lavadeiras, e despertar neles a confiança, para que se deixem conduzir à próxima batalha das reivindicações. E isto num futuro que devemos tomar mais perto tanto quanto possível, mas sem pressas. Ora o Neto está a ver que para isto tudo, são precisas campanhas, escolas, postos de ensino, postos clínicos, associações pequenas de folclore ou qualquer outra coisa para disfarçar, internatos etc. etc., organizações estas que o Estado deve autorizar, porque senão nada feito. E para eles irem nisso, temos que aparecer como «colaboradores» da obra civilizadora de Portugal. Embora o fim seja outro, muito nosso, temos que aparecer sempre a corresponder às pancadas nas costas. É isto o que a Liga tem feito, pelo menos agora (não recuso que antes bajulasse, mentisse, e se emporcalhasse indignamente e com o que eu também não concordo) e é por isso que penso que nós os jovens devemos meter as mãos naquilo, para não deixarmos que ela volte ao nojo anterior. Bem entendido que pelo facto de correspondermos às tais pancadinhas nas costas, não devemos negar que nos batem, que nos matam, que nos injuriam, que nos roubam e espoliam, que nos deportam e que nos vendem, e tudo o mais que sofremos. Não. A diferença entre hoje e ontem reside bastante em que começaremos a dizer claro que sofremos, e continuando a apresentar os nossos protestos e reclamações, mas não como revoltados, embora nos apeteça tal, mas sim como desejosos de harmonia (harmonia que não pode existir entre interesses de brancos colonizadores, e desejos de justiça de mais fracos). Desejosos de harmonia dentro da Pátria Portuguesa, e outros lugares comuns balofos e nojentos que se conhecem. Isto para que eles nos não tomem de ponta, e não nos neguem as autorizações de que necessitamos. Não será assim, amigo Neto? Eu penso que só assim é possível prepararmos o nosso Povo. Mais tarde, então a torrente correrá por si. A Liga, pois, é para mim um meio e não um fim. Por agora ela é precisa, mas daqui a um tempo já não interessa que o Governo a mande fechar, porque então já nem ela própria conterá tamanha força. Porque o Povo nessa altura saberá reunir-se mesmo na rua. Mais tarde a Liga terá forçosamente que desaparecer, para dar lugar a um partido político, ou terrorista. É sobre isto que eu agradeço que o meu amigo medite e examine, respondendo-me no todo ou em parte, com alguma brevidade. Dentro daquele princípio de acção que lhe expus atrás, a Liga pretende montar aí uma Delegação, visto que teremos de nos dirigir algumas vezes aos Poderes Constituídos daí, quem sabe até se em desavença com o Governador Geral. Uma das coisas que tenho notado não agradar, é a função de serem obrigados em qualquer altura de ir apresentar cumprimentos, por exemplo a qualquer dos Ministros ou entidade do Estado Novo. Eu porém penso que o facto é em si, tão digno (quando feito com dignidade) como voltar-se lá uns dias depois, a apresentar um protesto contra qualquer medida governamental. É claro, desde que os cumprimentos, ou felicitações, ou o que quer que seja, sejam feitos com a necessária ponderação, sobriedade e dignidade; mas isso já não é da culpa da Liga, e sim de quem o faz. Por outro lado, depois de tal atitude, até nós mesmos nos sentimos mais à vontade, e mais seguros, quando lá voltarmos a reclamar qualquer medida de justiça. Não será assim? Eu já escrevi sobre estes factos ao meu tio Humberto Machado, e ao Mário Pinto de Andrade, há já algum tempo e ainda não logrei obter resposta sobre assunto tão importante. Quando atrás me refiro que vejo com temor que nós os jovens não passarmos do «estudo», é que exactamente não vejo a colaboração destes, com aquela presteza que o momento aconselha e que eu indico até nas cartas que escrevo. E isso para quem como eu dirige, e pretende dirigir bem, chega a revoltar. Gostava que o meu amigo falasse com eles, e assentassem no que acharem melhor, para eu saber com quem posso contar e como me devo conduzir. Se não concordarem, que mo digam com a mesma brevidade, com que o devem dizer se concordarem, porque da vossa atitude, que são as pessoas em quem confio, e com quem desejo trabalhar, depende bastante a directriz daquilo em que me meter. Directriz, no sentido de processo ou meio de realização. Outro ponto que desejo abordar consigo, é a existência da Delegação da Liga aí. Desejo que veja o que acima exponho sobre directrizes da Liga, e que fale também com o Humberto e Mário Andrade, e me diga se aceita fazer parte da Comissão organizadora daquela Delegação. Quero explicar porque lhe faço este pedido: A ideia da Delegação aí vem do ano passado, Direcção cessante, portanto, que a estava a entregar ao seu parente (parente dos Vandunens e Torres) Joaquim Inácio dos Santos Torres. Havia já correspondência sobre isso, mas só se concretizou mais ou menos o assunto este ano. Desviei logo a chave do negócio das mãos do Joaquim Inácio, por me parecer que não era pessoa capaz. Depois o Mário confirmou-me isso. Entretanto ele Joaq. Inac. continua a desejar ter mão naquilo. Apareceu uma carta assinada pelo Agílio de Sousa e Andrade, Óscar Azancot de Menezes e Mário Pinto de Andrade, propondo-se constituírem a comissão organizadora dessa Delegação. Isto veio ao encontro dos meus desejos no sentido de afastar o Joaq. Inácio. Foi deste modo aceite essa comissão, composta de três, estando a Direcção aqui, a dirigir a correspondência para o Agílio, que foi quem assinou em primeiro lugar, não tendo nomeado nem presidentes nem quaisquer outros cargos. Parece que aí também o não fizeram. Convém frisar que, pessoalmente, não conhecemos nem o Agílio, nem o Azancot de Menezes. Não sabemos qual o seu grau de patriotismo, e qual a sua mentalidade sobre africanos. Como já disse ao Mário, eles foram aceites porque se faziam, por assim dizer, apresentar pelo Mário. Sucede que agora o Mário se escusa de continuar a participar da Comissão organizadora entre outras razões, por estar fichado como inconveniente ao Governo. Assim sendo, e porque com a nossa maneira de ser pessoal, não devemos prejudicar o trabalho em prol do bem geral, concordo que o Mário não faça parte da Comissão, embora não concorde, evidentemente, em deixar de aceitar toda a sua colaboração. Desta forma, e para que os parentes do Joaq. Inácio não me obriguem a aceitar a presença deste aí, e mesmo dado o facto de não sabermos até que ponto vão os sentimentos e capacidade do Agílio e Óscar Azancot, convém-me ter entre estes, pessoa de confiança, pois agora que a Delegação está no inicio, e que convém dar-lhe um caminho seguro, para depois não haver «bodega». Penso que o meu amigo está em número um para dar o seu trabalho em prol de uma obra que será de todos nós. Bastará eu propor o seu nome em reunião da Direcção, para o meu amigo ser aceite. Posso contar com a sua colaboração? Sinceramente não vejo pessoa mais indicada aí. Isso ainda esta muito em embrião. Só agora nos informa o Agílio, que vai pedir as necessárias autorizações ao Governo Civil, e ao Ministério da Educação, para o lado cultural da delegação. Julgo entretanto que a comunicação deve ser feita pela Direcção daqui, e indicando os nomes dos que compõem a Comissão Organizadora. Isso, portanto, só poderá ser feito depois do meu amigo dar-me a sua concordância. O Mário e o Humberto lhe mostrarão o que penso sobre a mesma Delegação, e que lhes tenho dito em cartas. Entretanto penso que também isso aí não tem girado por gonzos afinados, que é conveniente estabelecer já desde o princípio. Calculo que não têm reunido os três indivíduos, ou os dois, e portanto as directrizes não têm sido traçadas por todos e sim pelo Agílio. Isto não me agrada, e quero acabar com isso. O Agílio pede também agora um subsídio para a instalação da Delegação. Penso que é de se despender tal verba, embora apenas de início, porque para o futuro tem que contar apenas com os vossos próprios recursos, a não ser em casos muito acidentais. Porém não creio que o Agílio vá por exemplo alugar uma casa de exibicionismo. Nem vou nisso. Ele não diz de quanto é o subsídio. Acho que por agora interessa apenas um quarto ou appartement, barato, onde quem quiser saber da Liga vá encontrar notícias, e destinado a reuniões e secretaria; e também isto só é de aceitar, se já estiver elaborado um plano para que a Delegação se forme. Quer dizer: gastar esta massa, para depois não haver continuidade que nos dignifique, ou chegar-se à conclusão de que não vale a pena ou não é possível, isto não é de aceitar. Pus-lhe assim ao corrente dos assuntos mais importantes da Delegação, para o meu amigo poder responder-me com consciência. Cá fico, pois, à espera da sua resposta. Dentro ainda daquele pensamento, de nos apossarmos da maior soma de meios de acção, foi-me entregue a redacção, e posso dizer que duma maneira geral, a Revista Angola. Estou a tirar o número relativo ao 1º semestre, e já avisei disso o Mário e outros, mas até agora não recebi qualquer produção. Dou, como não podia deixar de ser, uma nova feição à Revista, mas entretanto, com a vossa presença ser-me-ia muito mais fácil e eficiente. Agradeço também o seu interesse sobre este assunto, e oxalá que desta vez tenha batido uma porta compreensiva. Volto a dizer-lhe o que já lhes disse a eles: Pode falar e tratar do que julgar conveniente para a Revista como se fosse eu próprio. Desejo que o meu amigo interesse a Alda Lara no assunto, e que lhe comunique que para o próximo número desejava publicar o seu belo trabalho «Acerca da Poesia de Angola» e portanto que me autorize a tal, e que veja se não tem qualquer rectificação ou acrescento a introduzir-lhe. Agradeço que interesse ainda Alexandre Dáskalos e todos aqueles seus amigos que sejam capazes de aceitarem ser meus amigos também. Em boa verdade, não tenho tempo suficiente para dirigir a Revista, e participar da Direcção da Liga. Mas não há aqui pessoa a quem entregar confiadamente a Revista. Desejo assim mantê-la comigo até a poder entregar em mãos seguras. E é isto o que tinha para lhe dizer, e que ocupou tanto papel. Não sei escrever cartas pequenas. Que é feito do Geraldo Bessa Victor? Não vem para cá? Uma das secções que mais falta nos está fazendo é a de contencioso. Sentimos a necessidade urgente de um advogado nosso que defenda com coragem os pobres irmãos nossos, que vêm sofrendo todas as tropelias que se podem imaginar, por parte dos chefes de posto e dos administradores, incluindo os de Luanda. Dão-se coisas constantemente, as mais diversas, que temos ponderado que só judicialmente é possível exigir responsabilidades, visto que o próprio Governador e quem possibilita tais violações. E esta lacuna ainda está por cobrir. Um caso interessante que te vou contar: Numa das rusgas que se efectuaram, com a presença do Administrador do Concelho de Luanda, aspirantes etc. etc., e numa das muitas casas em que entraram para puxarem de lá os negros, o administrador enganou-se e foi dar com um tipo, possuidor de Bilhete de Identidade, que lhe atestou uns socos, e lhe varou uma trolitada na cabeça. Vieram os auxiliares munidos de pistolas e o raio, ele foi-os despachando, até que teve que se render, pela malta enorme que lhe invadiu o domicílio. Obrigaram-no a engolir o bilhete de identidade rasgado em pedacitos, e ele não teve outro remédio senão mastigá-lo e engoli-lo. De tanta sova que lhe deram tiveram que o mandar para o hospital. O Administrador ia lá todos os dias pedir de joelhos aos médicos, que curassem o homem e que lho entregassem, ainda mesmo que essa cura custasse 100 contos. Que lho entregassem com vida. O homem melhorou, mas enquanto estava no hospital desejou constituir advogado. Pois não encontrou quem lhe aceitasse a questão. Já porque não tinha dinheiro, já porque era um caso contra as autoridades, nenhum dos bons homens da chamada oposição ao governo, os tais Simões Raposos, Álvares de Carvalho, Eugénios Ferreiras etc. etc, nenhum desses teve coragem democrática suficiente para enfrentar a batalha... Já não falo do Thomé das Neves, que este, incluindo a mãe e tudo, é um grande e refinado filho da puta. E o pobre patrício que foi arrancado de sua casa, lá foi deportado ou vendido para qualquer parte. Conclusão: Para os Negros não interessa a democracia proclamada pelos democratas que se conhecem. Os comunistas são os únicos capazes de nos ajudarem sem interesse particular. De resto já o disse Richard Wraigth... [sic] Acabo de reler o que escrevi. Por hoje é tudo o que tenho para lhe dizer. Aceite um abraço e a amizade do que se confessa ao inteiro dispor. Higino Aires apartado 1381 Luanda

Fotocópia da carta de Higino Aires a Agostinho Neto (documento do ANTT - Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Lisboa).

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