Carta de António Jacinto a Agostinho Neto

Cota
0001.000.018
Tipologia
Correspondência
Impressão
Dactilografado
Suporte
Papel comum
Remetente
António Jacinto
Destinatário
Agostinho Neto
Data
Idioma
Conservação
Bom
Imagens
4
Observações

Foi publicado no 1º Vol. de «Um amplo Movimento...».

Acesso
Público

2ª carta: de António Jacinto a Agostinho Neto [dactilografada - fotocópia] Luanda, 23 de Dezembro de 1951 Meu Caro Neto, Respondo à tua carta de 13 deste mês agradecendo e retribuindo os teus votos de Boas Festas e de Bom Ano Novo. Deves saber que esta quadra é bastante afanosa para um modesto empregado de escritório. Logo que esteja livre de balanços e outras complicações que não deixarão de surgir compilarei os versos da Ermelinda que quero incluir no caderno e depois tos enviarei. Sim senhor, assim mesmo, sempre que estejas apertado não hesites em recorrer à minha pessoa que estou incondicionalmente ao teu inteiro dispor. Mensagem, a despeito do que escreveu o «Comércio», suponho que pelo arauto do imperialismo senhor Reis Ventura, manterá ousadamente a característica de uma «voz dos naturais de Angola» não se importando com que queiram ou não «contrariar esta tendência». O próximo número, não sei se já te falei nele, acompanhará o primeiro e será uma continuação da firmeza da nossa consciência presente. Tentamos reunir o maior número de colaboradores possível. Publicará todos os trabalhos premiados no nosso concurso literário e mais poemas de Antero Abreu, Ermelinda, Viriato da Cruz, Alda Lara, António Neto, Agostinho Neto, Orlando Távora, Bandeira Duarte, na secção de «intercâmbio», Augusto dos Santos Abranches, Noémia de Sousa, na secção de «antologia», Ciro da Costa (brasileiro) e David Diop (francês) e na secção das «iniciações» A. Cardoso, Manuel do Nascimento Ferreira e Tomaz Jorge que podem vir a ser valores objectivos do futuro se não lhes retirarmos o apoio encorajador. Em prosa publicaremos uma crítica ao livro «Engrenagem» feita pelo José Mensurado, uma crítica à exposição do Pedro Cruz feita pelo Orlando Távora, o teu conto «Náusea», notas sobre a nossa campanha de alfabetização, Mário Pinto de Andrade, Rocha Martins na secção de Antologia. llustrará a revista o Castelbranco: ele é mais caricaturista que ilustrador, mas não temos outro. Certamente incluiremos um desenho do Pomar, ou do moçambicano João Elias ou do Augusto dos Santos Abranches ou possivelmente uma reprodução de Picasso. Nós esperamos muito da vossa colaboração, pois não há duvidas que vocês aí estão mais em contacto com as directrizes modernas que convém implantar entre nós. Saiu mais um número da «Angola». Igual ao anterior, salvo um bom poema da Alda Lara. Higino Aires parece-me bom rapaz, o que não basta. Vou procurar contactar mais profundamente com ele, a sós sem a interferência de importunos, para melhor poder avaliar das suas qualidades e defeitos. Dizem-me entretanto que ele é um pequeno ditador. Francamente conheço-o mal. Tenho assistido às últimas Assembleias Gerais da Liga. Há uma série de elementos que vão para ali só para falar, sem dizer nada. Discutem bravamente por insignificâncias que para nada servem. Entretanto creio que muito se pode fazer ali desde que apareçam dirigentes de pulso e bem intencionados. A massa associativa está é mal habituada que no fundo ela não é má. Carece é de ser orientada, principalmente orientada para longe da função de trampolim eleitoral a que a têm reduzido. Entretanto há à volta da Liga um movimento de rapazes novos, muitos estudantes, que têm sido arrastados por nós e que são pelo menos boas vontades. Um dia em que a infiltração seja mais completa creio que poderemos arrastar connosco os elementos reaccionários que por lá existem de molde a vincarmos uma posição definitiva de reivindicação. Infelizmente hoje a Liga não é mais que um capacho colaboracionista do governo a todos os títulos opressor. Mas o que nos caracteriza é precisamente a esperança fundamentada nas nossas reservas de trabalho e nas qualidades do nosso povo. A última Assembleia Geral da Anangola elegeu-me para um modesto cargo directivo. Como principal programa de realizações hei-de propor o estudo de uma série de realizações que nos ponham em condições de dispensar financeiramente a «esmola» que nos da o Governo. Só isto será já uma grande realização. Também proporei a intensificação efectiva da campanha de alfabetização com montagem de escolas e edição e distribuição gratuita do método Laubach, já redigi também uma proposta para a criação de subsídios escolares para a instrução primária, ensino liceal, comercial e industrial e também a criação de uma bolsa de estudos de 1.500,00 mensais que continuaria a ser atribuída ao Mário de Andrade e também penso na organização duma cooperativa para a construção de bairros sociais principalmente para os muceques onde o nosso povo vive em casas de chapa sem água nem as mínimas condições higiénicas exigidas para uma estrebaria quanto mais para casas de pessoas humanas como nós. Eu sei o que isto vai custar de luta, discussão, cálculos para arranjar dinheiro, etc, etc. E embora nada se faça eu acho da maior utilidade pelo menos fazer a proposta e discuti-la. E alguma coisa se há-de fazer de efectivo. Pode não ser com a pressa que o caso impõe e nós desejamos, mas lá iremos. São três problemas fundamentais: desagravamento da condição de «esmoler», difusão de instrução, e habitação condigna e higiénica com a nossa condição humana. Creio que não devemos resumir a nossa função ao escrever versos e a sentir os problemas apenas pelo bico de pena. Devemos caminhar activamente para as realizações objectivas. A Anangola teve agora uma intervenção interessante a respeito do caso dos Bilhetes de Identidade. O Governador Geral recusa-se a receber tanto a Anangola como a Liga. Fizemos uma exposição ao Governo Geral tendo enviado cópia para o Ministro das Colónias e para a Liga e Associação Africana do Sul de Angola para ver se conseguimos despertar estes organismos e se o Ministro dá uma rabecada ao Governador. Muitas crianças vão ficar este ano sem os seus exames e sem poder frequentar o liceu. Calcula que caíram num círculo vicioso. Na polícia não passam o bilhete de identidade sem o atestado da assimilação da administração. Na Administração não passam o atestado de assimilação sem a apresentação do bilhete de identidades. Que nome dar a este estado de coisas? Como proceder, calmamente com exposições e petições, ou sacrificando meia dúzia de nós entrarmos de rijo, impulsivamente e com a violência necessária para darmos a conhecer a eles e a nós próprios a nossa força? Creio que cedo ou tarde haverá sacrificados e vítimas. E se se tem de cumprir tal determinismo que seja já, mesmo imprudentemente, porque dos nossos actos de reivindicação alguma coisa há-de ficar, talvez mais violências e arbitrariedades, mas talvez também um exemplo firme no mais recôndito do coração do povo. No fundo, no fundo o pior não é só a censura. O pior é o medo que os jornais e revistas têm da censura. Alguém escreve para o Rádio Clube uma revista de recortes e notícias diversas. Outro dia, em conversa, falámos-lhe na oportunidade de noticiar haver Jorge Amado ganho o prémio Staline da Paz. Que não, que os serviços de produção não consentiam. Envio a «Tribuna», onde saiu o artigo do António Neto. Em tempos, e em resposta aos teus reparos ao mesmo caderno, expliquei as razões de alguns erros do caderno de «Antologia». Não vou agora repetir o que então disse nem vou fazer contra-crítica pois que não há lugar a tal, uma vez que concordo em muito com o critério e só discordo dos pontos em que ele se mostra ignorante do que se passou nos bastidores. E, afinal o público e os críticos nada têm de saber do que se passa nos bastidores das obras, mesmo dos erros e enganos do desenhador que desenhou a capa, o que no fundo são apenas atenuantes e nada mais. Quanto ao mais, os erros das primeiras realizações não podem admirar alguém. Uma coisa é certa, o caderno atingiu os seus fins de divulgação e marca como o primeiro passo para uma realização que se nos afigura será vultuosa. Não, no nosso Liceu não há decadência. Ressurgiu a Mocidade, os pequenos fascistas andam orgulhosos das suas camisas verdes e a educação é essencialmente retrógrada. Lembra-te de que esta geração aprende agora a ler as primeiras letras sobre um compêndio repleto de padres nossos e de relatos milagrosos de fátima e o mais que todo sabemos. A Mocidade está adormecida simplesmente, mas aqueles com quem tenho falado e aqueles que tenho conseguido despertar são bons agentes de trabalho. O principal redactor de «O Estudante» é extremamente religioso e daí o facto de ter dado guarida a tudo quanto rime com as suas ideias. Não devemos desesperar. Aquele meu poema foi intencionalmente para o «Estudante». Bem sei que formalmente não me satisfaz, mas ele serviu para mostrar aos miúdos que certos temas podem e devem ser trazidos para a poesia e que a nossa voz se deve sempre erguer na reclamação dos nossos direitos e na enunciação dos nossos anseios e aspirações. Só a educarão conventual e jesuítica deve responder por isto, que os miúdos, nesses confio Eu, desde que sejam bem encaminhados e iniciados. Por vezes vêm alguns estudantes a minha casa, aspirantes a poetas, mostrar os seus versos. Apareceram-me duas promissoras esperanças. A todos encorajo e a todos tenho lido versos teus, do Antero, da malta, leio-lhes poemas do Torga, do Armindo Rodrigues, Mário Dionísio, Muralha, Carlos Oliveira. Mostro-lhes quadros do Picasso; do Rouault, Dufy, Léger, Gris, Lam, desenhos do Pomar, do João Ayres, Abranches, leio-lhes as tentativas de poesia regionalista angolana do Viriato e minhas e vejo neles todos um interesse pela cultura que desejariam ter ao seu alcance (e infelizmente nos falta a todos por aqui) noto neles um quê de deslumbramento pela «novidade» que desconheciam em absoluto. E alguns sobem formidavelmente, tal o caso do Mário António, o último vencedor dos Concursos Literários do Departamento Cultural que quando me apareceu pela primeira vez trazia uns versos ao Paulo Dias de Novais e mais não sei quê. Agora está lançado. Eu conto muito com os exemplos, com os ensinamentos e com as críticas sãs que nos possam vir do exterior, principalmente de quantos de nós vivem em ambientes mais elevados e em mais amplo contacto com os grandes movimentos e os grandes artistas. O Lagrifa que é metropolitano não pode contar para a nossa geração pois a poesia dele não pode nem deve fazer carreira entre nós. Remeteu-se a um silêncio profundo que esperamos seja o mais longo possível. O Salvador Figueiredo apesar da sua habilidade não quer acompanhar o nosso movimento. Pretende ficar retrogradamente a fazer vilancetes à namorada, sonetos ao imbondeiro e o mais. Não pode ou não quer rasgar novos e mais humanos horizontes. E é pena efectivamente. O Armando de Figueiredo era moço de valor. É metropolitano e para aí está vai para dois ou três anos. O Leston Martins continua e bem. É dirigente do «Movimento» e anda a correr os principais postos emissores da Colónia realizando programas culturais com o n/ patrocínio. Está presentemente em Moçâmedes onde mantém no cartaz o programa «Movimento Poético». No primeiro programa que lá fez leu os teus poemas «Poema para todos» e «Adeus à hora da largada». A razão principal por que não publicamos livros deve ser a monetária. No meu caso pessoal, que tenho possibilidades de resolver este último problema, encaro sempre com um outro. Várias vezes tenho tentado organizar os meus versos para um livro. Nunca levo a intenção a bom termo porque escolho sempre os melhores poemas que tenho e afinal estes nunca me satisfazem. Também seria asneira reunir tudo num só volume porque não há entre os meus trabalhos uma unidade que desejaria imprimir a um livro meu. Os outros certamente é pelo mesmo motivo que não publicam coisa alguma, por não os satisfazer completamente a obra realizada. Ermelinda manifestou-me o desejo de publicar um livro. Por isso fica novamente suspensa a edição do caderno pois se ela se resolver pelo livro prefiro editar o livro a editar o caderno. Gostaria que nas tuas próximas cartas me fosses expondo francamente questões que aches de interesse vital para o movimento em que todos andamos empenhados, mas em que nós, os que aqui estamos, andamos mais directamente envolvidos, sujeitos a erros, inexperiências, e paixões. Sugestões, conselhos, rumos a indicar, problemas a enfrentar e tudo o mais, gostaria que mo expusesses sempre. Agradeço o envio dos dois trabalhos da exposição de arte missionária que já conhecia. A esse respeito li uma interessante crítica de Júlio Pomar da que aproveitarei algumas passagens para uma futura nota para a Mensagem. Como sabes entrei em contacto com o Abranches com vistas a um intercâmbio com Moçambique. O Abranches, autor de «Poemas de Hoje» e «Tufão», editou José Marmelo e Silva, Cochofel, Namora, Políbio Gomes dos Santos, pertenceu à direcção do «Novo Cancioneiro» e antes de vir para Moçambique formou o grupo que lançaria mais tarde a revista «Vértice». Mandei-lhe outro dia poemas da rapaziada de cá. A todos distinguiu com a sua atenção e manifestou-se encantado com o nosso trabalho: «No conjunto, os poemas enviados foram uma surpresa agradável, imensamente agradável, marcando uma posição de conjunto que me surpreendeu. Individualmente, tem que se cuidar dela, e parece-me que ao dizer isto a estou procurando valorizar ainda mais». Eis o que diz dos teus poemas que lhe enviei: «Poema para todos» é muito fraco; o início é anti-eufónico, com os seus «Para quê» e «porque» ensurdecendo os versos. Repare nisto: «porque esperanças», e veja como bate nos nossos ouvidos sem qualquer suavidade. O quarto e o quinto verso: «Para quê querer uma ilusão/ para apagar uma mentira» pode racionalmente estar muito certo que como poesia é que não se salva. Nem parece o mesmo poeta vivo, natural, de «Quitandeira» mesmo tendo «que», e «com» ou «como» a mais. Uma sugestão: em vez de «A quitandeira/ que vende fruta/ vende-se» não seria preferível “A quitandeira /vendendo fruta / vende-se»? O «que» é sempre um estorvo. Destino este poema para os «Cadernos de Poesia». Do António Neto diz: «Sem nada de excepcional, «Programa» satisfaz. Contudo, o verso «não cante a voz» ou eu escreveria: «Nem cante a voz», pois tenho horror a palavras repetidas, especialmente, e às terminadas em ão, particularmente... Penso em dedicar o número 6 ou 7 do Átrio a Miguel Torga, e publicá-lo-ei então. Do Viriato da Cruz diz: Digam o que disserem, temos poeta nosso. «Sô Santo» possui, além do tema, a técnica de uma poesia africana (nem negra nem colonial, africana apenas). Manuel Bandeira e alguns cabo-verdianos podem fazer-se sentir no jogo formalista, mas isso que importa? Tem personalidade, naturalidade e humanidade para resistir a mais que fosse! Bem, eu não [vou] continuar a transcrever tudo o que ele disse de nós. Também hoje já estamos a 7 de Janeiro e esta carta ainda não seguiu. Eu vou terminar aqui deixando o resto para outra vez. Ano Novo Próspero é o que deseja o amigo que te abraça e é o [assinatura de António Jacinto] A jam.

Fotocópia da carta de António Jacinto a Agostinho Neto. Resposta à carta de Neto de 13 de Dezembro 1951 (documento do ANTT - Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Lisboa).

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