Foi publicado no 1º Vol. de «Um amplo Movimento...»
Relatório de Amílcar Cabral [manuscrito] África, Set. 1959 Bons amigos 1 – Pelo documento junto tomarão conhecimento dos principais acontecimentos. A nossa gente, em todo o lado, vive cada dia uma vida mais difícil, mas há de sair vitoriosa da luta que está travada, embora em silêncio, e que urge ampliar, e reforçar da melhor maneira. A polícia lança mão, com as autoridades, de todos os meios para destruir os nossos quadros e evitar a nossa unidade. Vivemos uma etapa nova e decisiva e não faz sentido continuarmos na Europa, com o mundo de coisas que temos de fazer em África, onde a nossa ausência deixa uma lacuna prejudicial à luta. 2 – Vou tentar cumprir o programa que tracei. Depois de ir à m/ terra, vou tentar ir a Conakry, antes de regressar a casa1. Já medi os riscos que estou a correr, mas parece-me indispensável arrumar agora uns assuntos de que depende o futuro. Em Accra as coisas correram muito bem e só foi pena que não estivesse quem podia decidir mas tenho a certeza de que tudo vai marchar. Aguardo notícias. Vão estabelecer contacto convosco e o objectivo imediato é fazer vir um de vós, a tempo de poder estar presente na Ass. Geral da ONU. É fundamental. Vale a pena reunir os documentos e pôr o problema o melhor possível. Que nada consiga reter aí o que deve ir imediatamente para Accra. Temos de provar que lutamos e queremos lutar decididamente. 3 – O delegado da UPA em Accra está na América do Norte. Estou certo de que é um bandido. Cobarde, inconsciente, mulherengo, bebedor de cerveja, tem malbaratado todo o dinheiro que a nossa gente lhe manda – e não tem sido pouco. Em Accra deram-lhe tudo (casa, comida, gabinete de trabalho, etc.) e nunca fez nada. Por último, sob a razão de que vai representar-nos na ONU, foi para a América, comprando passagem com dinheiro que recebeu de Angola e do Congo. Todo o dinheiro do povo tem sido para ele – um traidor que o gasta com mulheres. Diz que se chama Roberto Haldane2, mas estou convencido de que é um nome falso (não será o Zuzarte de Mendonça?) e que visa servir-se da nossa causa, se não for um agente da polícia. É preciso substituí-lo e desmascará-lo perante os nossos. Mais uma razão – e forte!! – para a vinda imediata de um de vós, pelos menos, para Accra. Parece que pretende ficar na América para estudar. É preciso não deixá-lo representar-nos na ONU. É um traidor e bandido. 4 – Na vossa terra3, as coisas estão muito tremidas por causa das prisões, ameaças e porque muitos se têm vendido, como acontece em qualquer país. Mas a luta continua e tive a certeza disso. Uma atitude nossa no campo internacional seria de grande efeito sobre a nossa gente e concorreria para reforçar-lhe o ânimo. Fiz o que pude nesse sentido. O documento junto cuja parte referente à identificação retirei, foi entregue ao Governo de Ghana. Se conseguir o que pretendo, entregarei outro ao da Guiné. Temos de agir em todos os campos para ajudar os nossos irmãos que lutam no interior enfrentando os maiores obstáculos. Precisam sentir-se apoiados. 5 – Ilídio foi preso em Lisboa depois de ter tomado conhecimento do que havia sido decidido em Frankfurt. Consta que se tem portado bem, cheio de coragem, embora tenha sido dos mais apertados pela polícia. Não consegui contactar Singapura. Mas contactei Cacuaco que está muito bom. Tive de pôr-lhe as questões fundamentais decididas: unidade, fundos, ligações por terra, envio de credenciais, etc. Além disso, preparação para possível saída de gente nossa, conforme os convites feitos. Vamos a ver os resultados, mas quanto a mim tudo correrá melhor se tivermos gente de confiança e de valor em Accra, Congo Belga, etc. 6 – Contactei congoleses que mostraram o melhor interesse pela nossa luta. Endereços que convém reter: MADIANA Paul – B.P 1244 – Léopoldville/Est. Congo Belge; outro: MPOLO Maurice – B.P 13 – INONGOLO – Lac Léopold II – Congo Belge. São respectivamente, Vice-Pres. e Secret. Perman. do Movimento Nacional Congolês. Em Ghana: A.K. Barden – PO. Box M. 24 – Accra (é o Secretário do Advisor for the African Affairs). Contactei Brazzaville (Rep. do Congo), para ver da possibilidade de trabalho para gente nossa de confiança. Vamos a ver. Não confio neles, mas sempre seria mais um ponto de apoio. Acho que as pontes de acesso estão lançadas. Há que avançar. 7 – Depois de contactar Conakry, se o conseguir, escreverei. De qualquer modo voltarei a dar notícias, certamente por intermédio de Paris e por portador. Neste momento a grande necessidade é a presença de alguém de confiança em Accra e na ONU e creio que um de vós é esse Alguém. Não fico, porque há compromissos e há ainda mais voltas a dar. Cada um tem [que] estar no seu posto – e venceremos. 8 – Digam alguma coisa se puderem, mas evitem coisas complicadas. Não sei até que ponto estou sendo vigiado. Tive de tomar algumas atitudes pouco prudentes, sem o que as coisas não andariam. Vamos a ver se consigo passar através de tudo. De qualquer modo há deveres cumpridos: é o que interessa. Digam, se precisam de dinheiro; mandarei algum, embora pouco. Podemos arranjar dinheiro em África: é necessária a nossa presença. Sem isso, nada. Para todos o melhor abraço. Abel Silva
Original manuscrito da carta de Amílcar Cabral (em Accra / Ghana), para Lúcio Lara e Viriato da Cruz (Alemanha) relatando a situação em Angola e no Ghana.