Foi publicado no 1º Vol. de «Um amplo Movimento...»
Carta de Viriato da Cruz
[dactilografada]1
29.10.59
Meu Caro,
Respondo à tua carta de 26 do corrente.
1 – Interpretaste mal a parte da minha carta que te dizia respeito pessoalmente. Nunca me passou pela cabeça que serias capaz de te desenrascares e que não me incluísses numa solução dos nossos problemas. O que tenho a dizer a teu respeito, de um modo geral, foi o que já tive ocasião de manifestar: considero-te, desde o primeiro contacto pessoal, um homem sério, com um comportamento adulto e capaz de se dedicar, seriamente, com senso de responsabilidades, à causa que esposa. A tua presença activa neste combate, que se vem revelando, desde início, duro (como era de esperar) é necessária e indispensável, como de resto prova o que já foste capaz de fazer. Isto está fora de dúvidas. E peço-te que não levantes mais este problema de princípio.
O que exprimi toca apenas em questões secundárias, questões que não têm nada a ver com a tua fidelidade aos nossos companheiros, nem com a tua posição dentro do nosso movimento. Receei que a tua particular situação neste momento te pudesse desanimar, te esfriasse o ânimo, enfim, te levasse a uma atitude de abatimento. Senti-me com o dever de te animar como pude, precisamente porque avalio com justeza a tua posição de chefe de família, isto é, de homem que tem sempre de pensar por três. Asseguro-te que a minha intenção foi apenas alimentada da vontade de te estimular, na hipótese em que estivesses um tanto abatido por razões concretas e bem compreensíveis. Certamente me desculparás, se na forma como o fiz não exprimi justamente essa minha intenção.
Dizes que ninguém está desesperado. Óptimo. E isto também me anima, pois de modo algum eu poderia ser indiferente às tuas dificuldades, incluindo às da tua família.
2 – A questão dos «subterrâneos»2 merece um estudo cuidado. Na verdade, a organização da «esquerda» do nosso país era de parecer, há dois anos, que objectivamente existem interesses comuns entre o proletariado luso e o nosso povo sob o jugo colonial luso. Esses interesses comuns tornam possível e até desejável uma colaboração na luta. Em todo o caso, nós compreendíamos que essa «luta» (no seu aspecto genérico) assumia, na prática, aspectos inconfundíveis. A nossa luta radica-se numa história africana, desenvolve-se num terreno africano, baseia-se fundamentalmente em massas populares africanas, com culturas africanas e não europeias; essa luta visa, no presente, liquidar o colonialismo luso. No futuro, tudo indica que o desenvolvimento dos nossos interesses económicos, políticos e culturais orientar-se-á cada vez mais para o continente africano e menos para Portugal.
Assim sendo, é importante que os subterrâneos lusos tomem conhecimento, estudem e se convençam das nossas teses justas e, ao mesmo tempo, assumam posições de princípio inequívocas diante da personalidade do combate do nosso povo.
É justo que os subterrâneos lusos tenham no passado e no presente assumido posições diante dos problemas das colónias lusas. O «direito» de assumirem essas posições baseia-se, no mínimo, na responsabilidade que todas as classes lusas (todo o povo luso) têm em face da opressão colonial de Portugal. Não é só a burguesia lusa que tem responsabilidades na opressão colonial desse País. Todas as classes portuguesas têm responsabilidades diante da história colonial do seu País. Mas se é certo que da burguesia lusa nós estamos muito longe de esperar um gesto de solidariedade e de excomunhão dessa opressão colonial, também é certo que as restantes classes da sociedade portuguesa não deverão assumir posições de solidariedade para com o nosso povo intoxicadas de alguns vestígios do raciocínio do colonialismo. Quer dizer: a subestimação do direito à autodeterminação e à independência do nosso povo, no presente, foi um facto dentro das antigas teses dos subterrâneos lusos. Essa subestimação baseou-se em conhecimentos vagos e errados sobre o nosso povo. Esse erro dos lusos levanta, concretamente, um problema de princípio: Os subterrâneos lusos não estão sempre à altura de poder avaliar justamente os nossos problemas, e eles não podem, portanto, arrogar-se, de qualquer forma, o direito de ditar ou decretar caminhos para nós.
Importa que os subterrâneos lusos se convençam, na prática, de uma vez para todas, que os destinos do nosso povo só podem ser decididos por este através dos seus mais legítimos representantes. Os subterrâneos lusos não podem assumir posições de orientadores da nossa luta. Os subterrâneos lusos só podem trabalhar connosco como aliados.
A contribuição prática dos subterrâneos para a nossa luta comum – uma luta de que resultará logicamente maiores possibilidades para a fruição da liberdade em Portugal e nos territórios coloniais e maiores possibilidades para o progresso dos povos daquele e destes – essa contribuição não pode ser aceite se ela vem intoxicada de qualquer sentimento de «paternalismo» ou de «fraternalismo». A nossa não-aceitação dessa contribuição, nessas condições, não se baseia em qualquer sentimento de orgulho ou de amor-próprio. A nossa rejeição seria apenas um convite aos subterrâneos lusos para que eles vencessem o indesejável sentimento paternal. É hoje claro que a luta dos povos coloniais não significa apenas um benefício para eles: essa luta beneficia também as forças democráticas das metrópoles. Todos os povos colhem benefícios da luta de todos os povos. Não há povos que fazem «favores» a outros sem esperança de um benefício, mesmo indirecto e longínquo.
Também não há lutas «avançadas» e lutas «atrasadas». Se há povos que hoje ainda lutam por situações que outros já gozam desde há muito, a culpa não é dos primeiros. A culpa, ou grande parte da culpa, recai sobre os povos ditos «avançados» que, egoisticamente, evoluíram, durante longo tempo, não só aproveitando-se do trabalho e das riquezas dos povos coloniais, mas ainda esforçando-se, conscientemente, por impedir que esses últimos evoluíssem. Na verdade, os povos coloniais não estagnaram: eles retrogradaram, involuíram mesmo.
A luta dos povos coloniais pela libertação do colonialismo é tão «avançada» como a luta dos povos «metropolitanos» por sistemas sociais mais progressistas. Tudo depende da situação em que os povos se encontram. A situação melhor em que se encontram os povos ditos metropolitanos nem sempre foi adquirida por estes com um mérito e uma glória totais. Em face de tudo isto, achamos que não é justo que as organizações mais progressistas das «metrópoles» continuem estimando que a sua luta «avançada» lhes dá quaisquer direitos em face das lutas «atrasadas». Não lhes dá mesmo um direito de orientação.
Essas, algumas questões de princípio.
Sobre as questões práticas de uma colaboração, há que ver a forma de que se revestirão os gestos de solidariedade e de ajuda mútua.
Por exemplo: Será conveniente que documentos nossos apareçam impressos com os conhecidíssimos caracteres tipográficos dos subterrâneos lusos? A meu ver não há vantagem nisso. Pelo contrário. Os nossos inimigos comuns tudo farão para prejudicar a unidade dos povos coloniais e para prejudicar a unidade das camadas progressistas da «metrópole». Estas últimas camadas, na sua maioria, são anticomunistas e não aceitam, sem reservas, o movimento de libertação dos povos coloniais. Do seu lado, os povos coloniais têm interesse em conquistar, ao menos, a neutralidade de todas as camadas progressistas da «metrópole» diante da luta anticolonial. Seria um benefício para nós se todas as camadas progressistas da «metrópole» se comportassem neutralmente diante do conflito colonial, isto é, se elas não dessem uma ajuda concreta aos colonialistas. Mas sucede que, se essas camadas suspeitassem que os subterrâneos lusos estão connosco, grande parte delas seria facilmente presa da propaganda dos colonialistas e tomaria, no mínimo, uma atitude de indiferença negativa diante do conflito colonial.
Com este exemplo, pretendo fazer ver que a colaboração a que me referi atrás terá de ser realizada por formas previamente bem pensadas. Só assim ela poderá dar frutos positivos.
Um outro problema não menos importante seria o de os subterrâneos lusos limitarem o conhecimento dessa colaboração a um limitadíssimo círculo dos seus militantes. Estes teriam de ser dos mais seguros. Digo isto porque não será falso suspeitar-se de que dentro da organização dos subterrâneos possa haver elementos de mentalidade instável (para não me referir já a possíveis agentes do inimigo), elementos que compreendem bem a revolução social na «metrópole», mas que não compreendem bem a revolução colonial e que, em situação de aperto, possam chegar a denunciar (ou sabotar) a colaboração dos subterrâneos nessa última.
Falando particularmente do caso do encontro com o Mário, acho que nós também temos o direito de tomar medidas de segurança. Quero dizer, em encontros semelhantes, ser-nos-á necessário e legítimo pedir credenciais ao indivíduo que se apresenta como agente dos subterrâneos.
No respeitante ao caso da impressão de documentos, há problemas a levantar. Por exemplo: Como chegariam esses documentos aos nossos países? Por via marítima? Mas esta via ainda oferece as possibilidades que oferecia há tempos atrás?
Estou convencido que a melhor maneira, hoje, de fazer chegar documentos ao nosso país é por via terrestre. Os documentos que hipoteticamente poderíamos vir a imprimir em Port. destinar-se-iam à população lusa. Evidentemente que nesse País nós teremos algo a fazer junto do seu povo. Um trabalho de desmascaramento da propaganda colonialista no seio do povo luso não seria de todo inútil. [Nota de Lúcio Lara à margem: Seria mesmo bastante útil. Vide Argélia] Igualmente seriam úteis trabalhos que levassem ao povo luso conhecimentos sobre as nossas posições diante dos casos que se desenrolam e se desenrolarão nos nossos países; bem assim como trabalhos de ofensiva psicológica contra os colonialistas e as camadas populares que os apoiam e os apoiarão. Em suma: a palavra escrita é também uma arma, e ela tem a vantagem de poder actuar em toda a parte, de uma maneira que não pode ser considerada violenta. Ela é uma arma que tanto pode servir para conquistar como para ferir.
Outro problema não sem importância é o da interpretação dos povos coloniais à ajuda que hipoteticamente receberíamos dos lusos (quer estes fossem mesmo os «subterrâneos»). Não há dúvidas de que, como já frisei, na realidade objectiva e teoricamente, há interesses comuns entre nós e eles que poderiam tornar possível uma inteligente colaboração de ambas as frentes. Mas sucede que a imensa maioria dos povos coloniais não conhece bem esses interesses comuns, e, por isso, tem tendência para desconfiar de qualquer ajuda lusa, seja esta qual for. E com razão. Assim sendo, põe-se, neste caso, um problema de princípio e de táctica. O problema de princípio consiste em jamais nos afastarmos da compreensão das massas populares dos nossos países. Devemos marchar à frente do povo; mas somente um passo em frente, a fim de não nos desligarmos das massas. É com o nosso povo que, bem ou mal, devemos permanecer sempre. O nosso dever é o de ajudar a amadurecer-lhe a sagesse política.
O problema de táctica consiste em nós, as vanguardas dos nossos povos, aproveitarmos os meios que já podem ser aproveitados em favor da nossa luta, mas sem que as massas populares tirem do conhecimento desse nosso aproveitamento conclusões desfavoráveis aos «compromissos» que nós estabelecêssemos com organismos estranhos aos nossos países. Este problema é particularmente difícil, porque teremos de preservar a nossa honestidade para com os nossos povos e teremos de evitar todos os compromissos que hipotequem a liberdade de movimento dos interesses dos nossos povos.
Finalmente há o problema das possíveis futuras negociações com os subterrâneos lusos. Quem entabulará essas negociações? A meu ver, essas negociações deveriam ser entabuladas por gente nossa que está dentro e por gente nossa que está fora. Esta combinação de gente de dentro com gente de fora permitirá uma combinação de experiências. Nem os que estão dentro conhecem todas as nossas possibilidades em plano internacional, nem os que estão fora conhecem todas as razões políticas e de cautela dos que têm vivido até hoje lá dentro.
Em que sítio se entabulariam essas negociações? A meu ver, o melhor seria cá fora. Os «subterrâneos» lusos mandariam pessoa ou pessoas devidamente mandatadas para discutirem connosco problemas de princípios e problemas práticos referentes a uma possível colaboração. O melhor seria que nós sugeríssemos aos subterrâneos lusos uma agenda dos problemas que seriam discutidos nesse encontro. Ou então seriam eles a sugerir-nos essa agenda. De qualquer forma, é importante que ambas as partes apareçam ao encontro sabendo o que se irá e o que não se irá discutir nele. É preciso definir os limites dos assuntos a serem discutidos e é preciso, ao mesmo tempo, que ambas as partes se encontrem já preparadas previamente para a discussão. Assim evitar-se-ão perdas de tempo e divagações inúteis. O trabalho assim terá mais chances de ser frutífero e de chegar a conclusões bem pensadas, não improvisadas. Numa palavra: temos necessidade de entrarmos numa fase de trabalho adulto, maduro, ao nível dos nossos propósitos que são dos mais sérios.
3 – Apoio os teus argumentos sobre a necessidade, igualmente, de cobranças de «massa» entre nós, mesmo simbólicas, a fim de não perdermos o senso das nossas permanentes obrigações materiais para com os nossos problemas.
4 – Não te aconselho a realizares o plano de embarque para Luanda, aproveitando uma descida em Accra para falar aos mandões. Este plano é muito frágil. Imagina que, por exemplo, nessa altura, as autoridades sanitárias proíbam os viajantes de descer do avião. O que farias? E se pelo caminho as autoridades dos outros países não te deixassem ficar nos seus respectivos países? Estavas obrigado a deixares-te levar para Luanda.
Não. Penso que, a admitir-se a hipótese de ires a Accra mesmo sem a autorização de séjour longo, o melhor será então ires lá com um visa de turista, passado pela sua Embaixada em Paris. Com um visa de turista terás a certeza absoluta de que as autoridades do país te deixarão ficar lá pelo menos dentro do período de validade do visa. O que poderia dar-se, entretanto, durante o teu séjour como turista, é que conseguisses depois um séjour permanente, como exilado político ou não.
Por outro lado, sei que, há meses, um príncipe da Mauritânia francesa apareceu, de avião, em Accra. Pediu asilo. As autoridades não lho deram. E ele, parece, viu-se obrigado a regressar à terra onde possivelmente sofreu as consequências da sua aventura. Parece que, nesse caso, as autoridades ganaenses quiseram evitar complicações diplomáticas com as autoridades francesas. Fosse o que fosse, aí fica um exemplo.
Sou de opinião de que, a ter-se possibilidades para tanto, o melhor será que um de nós vá a Accra falar com os mandões, mesmo sob a condição de regressar depois de terminadas as démarches. Mas de qualquer modo o que é preciso é haver uma base de segurança nessa deslocação.
Acho que deves discutir esse problema com os amigos de Paris, pois eles estão perto das Embaixadas e poderão alicerçar os seus argumentos e conselhos com informações seguras colhidas junto dessas embaixadas. Em todo o caso esse assunto deverá ser cautelosamente discutido e resolvido.
5 – Quanto ao programa, estou de acordo em que se deva redigir outro, mais dentro da actual situação dos nossos problemas. Vou fazer um rascunho aqui. Enviar-to-ei depois. Em todo o caso, pede a Paris que te envie cópias do programa que redigimos lá há dois anos e cópia do programa redigido em Angola e que vinha com os estatutos que já conheces. O Mário deve ter cópia deste último programa, e o Marcelo [Marcelino dos Santos] deve ter cópia do primeiro.
6 – Não há dúvidas de que existe uma certa dificuldade de concretizar a estrutura do maque [sic] dentro, mais ou menos, dos moldes que sugeri. Isto quer dizer que esses moldes merecem ser melhor estudados. Mas isso quer dizer também que a nossa falta no exterior de mais gente tem de ser igualmente vencida. Estudo aprofundado e rápido da nova estrutura, e vinda para fora de gente capaz e indispensável – eis dois problemas que precisam de ser resolvidos. Somente a solução simultânea desses dois problemas pode fazer avançar o nosso trabalho e pô-lo ao nível das nossas actuais necessidades.
7 – Dinheiro. Ciente de que temos aí massa. Mas falando sinceramente, devo dizer-vos que o dinheiro está melhor aí. Eu aqui vivo, bem ou mal; isto é, tenho mais possibilidades de me desenrascar do que vocês aí. Um jornal acaba de me pagar trezentos manguços, por três artigos que escrevi, mas que acredito não serão publicados, ao menos por estes tempos. Não pago renda. Por outro lado, a união comunicou-me que, se tiver dificuldades materiais, eles estão prontos a ajudar-me. Claro que penso não lhes maçar mais. Mas se estiver apertado, ponho de parte todo o orgulho besta, e peço-lhes mesmo um mínimo de ajuda.
Se vires, portanto, que esse dinheiro pode ajudar-te a realizar o plano de uma viagem, ainda que temporária, a África, não hesites em utilizá-lo inteiramente. O que interessa é que essa massa seja gasta o melhor possível. Temos de pôr de parte toda a preocupação de «propriedade» no respeitante a fundos. Que estes sejam para resolver as necessidades da luta geral. Não poderão, de modo algum, ficar depositados à espera de necessidades individuais. É assim que, francamente, eu vejo essa questão de fundos.
Os cem manguços que me mandaste terão a sua utilidade: para a correspondência a enviar-vos. Para este efeito, os cem chegar-me-ão bem para mais de um mês.
Acredita definitivamente na minha posição no tocante a fundos. Para mim, o que interessa é que eles sejam utilizados o melhor possível na solução rápida dos nossos problemas gerais. Nada de proprietários individuais. Um por todos e todos por um; mas acima de tudo os interesses colectivos; melhor: a solução dos interesses colectivos.
8 – Enviei, há dias, ao Horta cópia de parte de um trabalho que estou a escrever. Já o conheces. O Horta leu-o já, e fez sobre ele críticas e sugestões. Agradeço que tu e a Ruth o leiam também e escrevam sobre ele, nos versos das folhas ou às margens, todas as críticas e sugestões que vos apetecer. Tenho interesse em que façais isso com rapidez, porque quero aproveitar ainda a minha estadia aqui para trabalhar dentro das sugestões que me apresentareis. Assim, espero que fareis a leitura do trabalho dentro de 3 ou 4 dias depois de o receberdes do Horta. Este já vo-lo remeteu. Comunicou-me isso por carta que hoje recebi. Depois dessa vossa apreciação crítica, remetei-me o trabalho para aqui, pelo endereço do costume.
9 – Tenho interesse de ler o teu trabalho sobre a questão colonial na Onu. Conheço pouco sobre o assunto. Essa leitura possibilitar-me-á fazer uma ideia de um assunto que tem interesse para todos nós. Além disso, a partir dele poderei também iniciar pesquisas mais orientadas.
10 – Compreendi melhor a situação em que está a correspondência que Paris fará. De acordo com as medidas que tomaste a esse respeito.
11 – É possível que esta minha carta te encontre em Paris. Aconselho-te a aproveitares o teu tempo nessa cidade para resolver problemas junto de Embaixadas e fazer coisas com consequências concretas. Não te deixes arrastar pelas discussões longas e pouco consequentes de Paris. De outro modo, será tempo perdido; e não sei se tão cedo terás possibilidades de regressar a essa cidade. Julgo que a invalidade do teu pass impossibilitar-te-á isso.
12 – Não sei quem seja o Rocha. Se ele tem um passado limpo e se ele revela, claramente, possuir um carácter íntegro, justo, imparcial – acho que temos mesmo o dever revolucionário de lhe ajudar a chegar a uma posição digna em face da luta dos povos coloniais. Entre nós e os nossos inimigos, estende-se toda uma vasta massa popular sobre a qual os nossos inimigos despejam carradas de argumentos a fim de a conquistar, como aliada, na permanência da opressão colonial. Essa massa popular tem um peso enorme e, por vezes, decisivo na luta colonial. Sendo assim, nós temos todo o dever revolucionário de, no mínimo, levar uma parte importante dessa massa a posições de neutralidade favorável à nossa luta. No manifesto redigido há anos em Angola, sublinhávamos essa necessidade revolucionária. No máximo, se alguns elementos saídos do grupo colonizador se revelavam inequivocamente capaz[es] de abraçar a nossa causa, nós estabelecêramos que deveríamos assimilá-los às nossas fileiras. Há anos, a este respeito, nós tínhamos mesmo já passado da afirmação teórica para a realidade prática. Quero dizer: chegáramos ao ponto de consentir, com base realística, a presença de alguns desses elementos nas nossas fileiras, sem qualquer discriminação. (Por esta razão, digo entre parênteses, ríamo-nos dos que nos acusavam de fazer uma política com base no racismo). O certo porém é que não admitíamos nunca, fosse quem fosse, sem um cauteloso trabalho de preparação prévia. Esse trabalho visava a liquidar todas as dúvidas e preconceitos nocivos que existiam no mais recôndito do espírito dos que tínhamos em vista conquistar para o nosso combate. No caso particular dos indivíduos de origem colonizadora, eles têm dúvidas – secretas ou declaradas – sobre se a revolução anti-colonial visa ao ataque e ao prejuízo dos colonos e seus descendentes com base principalmente no facto racial. É o tal problema da «expulsão do branco de África», tão decantado pela propaganda colonialista. Não tínhamos também ilusões que, para convencer do contrário a esses indivíduos, bastaria afirmar «não!». Nós estabelecêramos que, com esses indivíduos, deveríamos descer à discussão, até aos mínimos detalhes, de todos os factos coloniais; deveríamos discutir com eles sobre as origens, os objectivos e os meios utilizados para a implantação do regime colonial e para a manutenção desse regime. Poderíamos discutir a génese do racismo dos colonos e do «racismo» indígena. Devíamos demonstrar, com exemplos convincentes, históricos e actuais, que os povos coloniais não poderiam, na realidade, libertar-se se, após a libertação política de uma colónia, a economia da colónia continuasse nas mãos dos antigos colonos ou seus descendentes. Deveríamos demonstrar que, tanto para a liquidação de todas as sequelas do regime colonial como para o estabelecimento de uma verdadeira justiça social, nós pensávamos que os pontos-chave da economia da ex-colónia (os quais estão sempre nas mãos dos colonos) deveriam ser oportunamente socializados. Nós teríamos que demonstrar, enfim, que a revolução colonial era um processo (e não um gesto isolado, único) que visava humanizar as relações entre todos os homens que resolvessem viver e trabalhar na ex-colónia. A exploração, o roubo despudorado, a opressão política, a miséria, o racismo, os antagonismos étnicos, culturais e religiosos são factos vividos, desde longa data e de uma maneira particularmente violenta, na colónia. São factos maus. Precisam de ser liquidados de uma vez por todas. Eles não deveriam mais ter lugar na ex-colónia, fosse qual fosse o grupo humano ou a classe que os originasse no futuro. Evidentemente que esse processo de extirpação dos maus efeitos do colonialismo não se realizaria em um ano ou dois. Por isso, os elementos saídos do grupo colonizador teriam que fazer prova de compreensão em face das manifestações chatas dos indígenas diante do ex-grupo dominador. Essas manifestações dos indígenas são, na verdade, determinadas pelas violências longamente exercidas pelos colonizadores. A culpa desse possível comportamento indígena deve ser atribuída ainda ao colonialismo e não a qualquer fenómeno racial ou étnico dos povos indígenas.
A verdade, porém, é que as actuais lutas dos povos africanos têm-se revelado com uma clarividência e um equilíbrio políticos sem exemplo no longo comportamento histórico dos povos colonizadores. Ouve-se falar por exemplo de mortes de africanos na Niassalândia, no Congo e outras regiões de África; mas não se citam mortes de colonos. Os movimentos revolucionários africanos oferecem o direito de opção de nacionalidade aos ex-colonos e seus descendentes, em igualdade de direitos e deveres com os indígenas.
Enfim, o trabalho de conquista e assimilação à nossa luta de elementos saídos do grupo colonizador não pode ser superficial nem pode basear-se em compromissos. A aceitação de elementos saídos do grupo colonizador tem de ser precedida de uma autêntica lavagem de cérebro e de consciência. Esses elementos só poderão esposar autenticamente a nossa causa, quando eles não têm dúvidas sobre a justeza da sua opção. É mau que eles se associem a nós por sentimentalismo, por «porreirice», por espírito de «ajuda desinteressada», por moda ou mesmo por tabela, isto é, através das teses marxistas que dizem que o proletariado metropolitano é um aliado dos povos coloniais e vice-versa. Todas estas posições são, em verdade, frágeis. Na prática, não é raro que, diante de comportamentos inúteis e desequilibrados (mas compreensíveis) dos indígenas, os elementos saídos do grupo colonizador se «desiludem», afastam-se, de várias formas, da causa revolucionária, acusam os indígenas de mal-intencionados, de ingratos, de alimentarem desígnios e suspeitas exagerados. É que, quando isso se dá, tais elementos não têm ainda a consciência de patriotas africanos, nem têm ainda uma justa compreensão da podre herança colonial na consciência dos africanos. Se nenhum africano indígena tem o direito de combater pela liberdade da sua pátria com o fito de vir a ser sempre reconhecido, também nenhum descendente de colonos, que esposa a causa anti-colonial, tem o direito de exigir que, no decurso da luta, ele venha somente a receber flores de toda a gente. Em todos os tempos e em muitos países, há exemplos de grandes patriotas que, no decurso da luta ou após esta, não recebem, injustamente, reconhecimento dos seus esforços e mesmo sacrifícios. Mas sempre que tais indivíduos tinham uma verdadeira consciência patriótica, eles nunca esconjuraram a sua pátria e todos os seus compatriotas. Eles continuavam, pelo resto da vida, sentindo-se ligados à sua pátria e ao povo do seu país, e prosseguiam um novo combate patriótico para expurgar da sua pátria as forças ou interesses que mantinham ainda injustiças no seio daquela. A luta patriótica tem sido sempre, antes de tudo, um dever. Ela, se é autêntica, não tem nada a ver com o espírito das transacções comerciais. Ela é uma luta imposta pelo amor do país e do povo, pela moral e pelo sentimento de justiça.
Fico-me aqui. Isto parece que já está a ter ares de discurso. Mas não é essa a minha intenção.
É isso que se me oferece dizer, neste momento, a propósito dessa questão.
13 – Li no «Huma»3 que a segunda Conferência dos povos africanos, que terá lugar em Túnis, será em 25 de Janeiro do próximo ano.
14 – Penso que, se até um futuro próximo, não conseguirmos resolver as nossas démarches junto de Accra, Conakry ou outro território julgado conveniente para o nosso trabalho no solo africano, devemos começar já a pensar na possibilidade de assentarmos arraiais, ainda que temporariamente, no Cairo. Lá está o Conselho de solidariedade afro-asiática. Muitos movimentos africanos têm bureaux no Cairo. É certo que a situação interior do Egipto não é hoje risonha, do ponto de vista político. Mas nós, como os outros que lá estão, não temos nada a ver com isso. É essa uma questão interna. Desde que estabelecêssemos um acordo de trabalho que fosse aceite por nós e pelos donos do país, não seria inútil fazer lá e de lá algum trabalho em favor dos nossos interesses. Simplesmente, as nossas pretensões teriam de ser sagazmente expostas, a fim de não levantarmos suspeitas e a fim também de não sermos comidos. Nessa altura, a nossa experiência até hoje poderia ser-nos útil nessas démarches. Julgo que não é de pôr de parte essa possibilidade. Talvez teremos de recorrer mesmo a ela, num futuro próximo. Já temos contactos, e bons, com o Conselho de solidariedade; portanto, já temos porta aberta, pelo menos a porta do quintal. Além disso, a manter-se a resistência «incompreensível» de Accra e Conakry, se tivéssemos êxito junto do Cairo, isso seria um estímulo para nós, seria uma prova da nossa vontade indomável de vencer todas as dificuldades, e seria ainda uma bofetada que oportunamente faríamos sentir, rindo, àquelas capitais da África Negra.
15 – Recebi o exemplar da Gauche. Obrigado. Mas já cá tinha dois. Bom trabalho do Mário. Felicita-o por mim. Interessante o que me contas sobre o processo da pide contra o New Statesman. A meu ver esse aumento notável da actividade do governo luso no plano internacional, além de denunciar o nervosismo crescente em que ele se encontra, só terá consequências negativas para os lusos. Com efeito, são eles que, bem ou mal, estão hoje contribuindo também para furar a indiferença internacional diante dos problemas lusos. A não ser que o governo luso esteja seguro de ganhar a causa contra o referido jornal, acho que essa questão das torturas é tão verdadeira, que o New Statesman tem muitas probabilidades de sair vencedor. Seria interessante que o New Statesman pedisse, durante o pleito, o depoimento dos presos de Angola, como, por exemplo, do Benge e outros.
Envia ao Mário cópia do artigo que te remeti há semanas. Pode ser que ele veja conveniência em respigar dele quaisquer elementos que seriam úteis ao B. Davidson.
16 – Os meus atestados de vacina têm validade para um mínimo de três anos. Vacinei-me dias antes de sair da terra, isto é, há dois anos.
17 – Agradeço que me envies o documento argelino «L’Aspect juridique», bem assim como cópia exacta do despacho do secretário do governo sobre o ensino das missões católicas e protestantes.
Cumprimentos a todos. Beijos ao Paulinho.
ass.) V.
Carta de Viriato da Cruz a Lúcio Lara