Carta de Viriato da Cruz a Lúcio Lara

Cota
0007.000.068
Tipologia
Correspondência
Impressão
Manuscrito
Suporte
Papel comum
Remetente
Viriato da Cruz
Destinatário
Lúcio Lara
Data
Idioma
Conservação
Bom
Imagens
10
Observações

Foi publicado no 1º Vol. de «Um amplo Movimento...»


Carta de Viriato da Cruz
[manuscrita]

30.11.59
Caro amigo,

Penso que já está em teu poder a carta que te enviei ontem – domingo, 29 –, «express».
Volto hoje a novos assuntos.
Tendo em vista a tua próxima partida para Túnis, é preciso fixar já, de antemão, os pontos fundamentais que deverás resolver naquela cidade.
Acho que deverás esforçar-te por, da maneira mais inteligente, habilidosa e paciente, conseguir:
1 – que as entidades oficiais nos autorizem a abertura de um bureau de informação e trabalho em Túnis.
A meu ver, este deve ser o teu objectivo fundamental.
2 – Em virtude de o comércio bancário estar nas mãos dos portugueses em todas as suas colónias; em virtude de ser quase impossível (para não dizer impossível) transferir dinheiro das colónias para qualquer outro território (sobretudo se esse dinheiro é transferido por indígenas); é-nos impossível manter toda a existência e actividade desse bureau sem uma ajuda de entidades tunisianas.
3 – Isso não quer dizer que nós pedimos tudo às entidades tunisianas. (Nem deverás pedir tudo).
4 – Com que é que as autoridades ou organismos tunisianos nos podem ajudar?
(Para nós, convinha-nos: casa, se possível, com modesto mobiliário de escritório; e uma pequena ajuda financeira).
5 – Esse bureau de informação e trabalho (o primeiro que abriríamos em território africano livre) tem interesse para nós para os seguintes fins:
a) Interessa-nos ter uma «sede», um endereço fixo, para o qual se dirigiriam, permanentemente, todas as entidades e organismos com quem mantemos relações, e os quais são já muitos.
b) Interessa-nos concentrar em Túnis alguns africanos dos nossos países que trabalhariam, em conjunto e perto uns dos outros, em tarefas que são urgentes e indispensáveis à nossa actividade. Essas tarefas são, principalmente: direcção da luta política nos nossos países; edição de material informativo sobre os nossos países; relações com organizações africanas, asiáticas, e de todo o mundo que julguemos interessar ao nosso combate contra o colonialismo português.
6 – É possível que, se for vantajoso para a nossa luta e se for possível, abramos novos «bureaux» em outros países africanos mais próximos dos nossos territórios. (Não interessa dizer que tencionamos abrir em Ghana, Guiné ou Congo Belga esses «bureaux». Se as autoridades tunisianas te perguntarem se tencionamos abrir esses «bureaux» em Ghana, Guiné ou Congo Belga, tu deves dizer que, sobre o local, nada temos assente. Tudo dependerá das vantagens que, no momento, advierem para a nossa luta a abertura de um bureau no país A, B, C ou D.)
7 – Acho que não deves pôr ao corrente das autoridades tunisianas as nossas démarches junto de Ghana e Guiné. Isso pode levar as autoridades tunisianas a procurar saber, previamente, junto de Ghana e Guiné o motivo por que estes últimos países não deferiram os nossos pedidos. Ora, como não sabemos os motivos reais do não-deferimento de Ghana e Guiné; como esses motivos podem ser pura sacanice ou de falsas informações a nosso respeito, – acho que devemos evitar que as autoridades tunisianas se ponham em contacto com Ghana e Guiné para saber coisas de nós.
Mas se fores obrigado – com vantagem para nós e não por simples informação – a referires-te às nossas negociações com Ghana e Guiné, não entres em pormenores, não ataques Ghana e Guiné; mostra-te displicente, sóbrio e digno nas referências à conduta dos dirigentes desses dois países em relação a nós. Não te esqueças nunca que como te referires aos outros países africanos é como os tunisianos pensarão que nos referiremos a eles, no caso de eles não satisfazerem todas as n/ vontades.
8 – Não faças pedidos de passaportes tunisianos para nós. Isso é muito complicado, e é levantar problemas fora do tempo. O de que precisamos não é de passaportes tunisianos, mas sim de autorização de entrada e séjour na Tunísia. Com essa autorização (VISA) e com «passaportes para estrangeiros» fornecidos pelos países em que nos encontramos, podemos comprar passagens e viajar. Quando estivermos na Tunísia, veremos, à la place, o que será preciso fazer para legalizar o nosso séjour e o que será preciso fazer para sair da Tunísia para um outro país. Não levantes problemas inúteis, fora do tempo, de um interesse longínquo. Levanta somente problemas de interesse imediato. A melhor maneira de resolver problemas consiste em solucionar os «factos consumados». Ora, os «factos consumados» principais para os nossos interesses são:
– Autorização para abertura de um «bureau» em Túnis
– Autorização para entrada, no país, de alguns de nós.
9 – Tu vais em missão política. A política não se faz com emoções e sentimentos pessoais, nem com escrúpulos à moral corrente. Na política o fundamental é VENCER. A melhor vitória é a que se obtém com o mínimo de compromissos da nossa parte e com o mínimo de informações inúteis sobre a nossa vida organizativa.
Não te esqueças que as autoridades de um país não podem (sobretudo em casos como o nosso) darem um consentimento expresso, claro, de tudo quanto lhes pedirmos. Há coisas que as autoridades de um país autorizam fingindo ignorá-las; mas que não autorizam, se lhes pedimos que no-las autorizem expressamente. É assim a vida. São os truques dos papéis, das burocracias, dos acordos. («Nós não sabíamos». «Nós não autorizamos isso».)
10 – É possível que te peçam os Estatutos do MAC, a fim de se inteirarem do carácter da n/ organização. Não sei se os tens. Não sei se o MAC tem Estatutos. Em todo o caso será chato que a nossa teimosia em trabalhar primitivamente levante dificuldades diante de uma exigência que não terá nada de exagerado.
11 – Acho que, se conseguires o que exprimi atrás, terás obtido uma grande vitória e uma base concreta, nova, para o nosso trabalho.
***
A – Não penso, nem acho, nem sou de opinião. Como membro do MAC, solicito, energicamente, que APAREÇA CÁ FORA uma direcção do MAC, que realmente dirija, diariamente, a vida do MAC e que esteja devidamente mandatada a agir, em todos os sectores, em nome do MAC.
Quantos são os dirigentes do MAC? Quantos estão cá fora? Tem o MAC um presidente? Tem o MAC um secretário-geral? Quem tem autoridade, no MAC, para assinar credenciais, para assinar acordos com organismos estranhos?
B – Pôr todos os assuntos do MAC a uma discussão prévia de todos os membros do MAC, é um modo de proceder sem exemplo em nenhuma organização combativa deste mundo. Há muitos assuntos que são competência de um Comité directivo. Este pode e deve, na luta de cada dia, tomar resoluções e executar actos que respondam, com oportunidade, aos acontecimentos. Se se for a pôr tudo à discussão prévia de todos os membros de uma organização, raras vezes se poderá ser, como convém, oportuno e rápido. Onde é que já se viu, uma organização ou um Partido convocar uma Assembleia, um Congresso, ou abrir uma «discussão geral» para cada um dos problemas que quer resolver? Isso seria uma «democracia» lunática. A democracia que convém a um Partido, nas formas de luta do nosso tempo, é o «centralismo democrático». Quer dizer: o «Programa Geral» (nas suas linhas gerais) e os organismos directivos respectivamente, é traçado e são eleitos democraticamente por todos os membros da organização. Mas quem põe, por mil e um meios, o Programa Geral em execução prática e quem dirige a vida diária da organização, no intervalo de dois Congressos, é o organismo directivo da organização. Este organismo tem competência para tomar decisões, fixar missões, publicar manifestos, lançar palavras-de-ordem, assinar acordos, estabelecer negociações, etc.
Lede os Estatutos das organizações políticas sérias do nosso tempo. Encontrareis, em todos eles, isso que te digo.
O MAC tem uma burocracia estúpida, lunática e que não responde, com oportunidade, aos acontecimentos.
É preciso ACERTAR TUDO, e urgentemente.
C – Quando partes daí? Avisa-me com 3 ou 2 dias de antecedência.
D – Obtive hoje autorização de séjour até 30 de Dezembro. O que penso fazer depois disso? Respondo: Eu estou permanentemente à disposição da nossa luta. Não tenho programas individuais. Já estou informado que aqui dão-me passaporte de estrangeiro. Por conseguinte, se tiver visa ou autorização para entrar, por exemplo, em Tunísia, e se retiver dinheiro para as passagens, parto imediatamente. A minha posição é clara; ou ainda não?
Cumprimentos. Beijos ao Paulinho.
O meu melhor abraço.
V.

P.S. – A malta de Lisboa tem o DEVER de fazer tudo (mas tudo mesmo, sem considerações nem respeitos às barreiras levantadas pelos colonialistas portugueses) de arranjar SEMPRE fundos para o nosso combate. Não se pode fazer um combate anti-colonialista contando apenas com as subscrições dos Abéis, dos Silvas e dos Santos. Um combate anti-colonialista só pode ter êxito com o apoio financeiro das massas populares interessadas. O dever dos amigos de Lisboa não é de sangrarem para ajudarem o nosso combate apenasmente com o seu dinheiro: eles têm o dever de ir buscar e acumular os fundos de milhares e milhões de pessoas – de todos ou quase todos os que estão interessados em verem-se livres do colonialismo português. É assim que se faz em toda a parte. Porque seremos nós uma excepção?
O que há, na malta de Lisboa (exceptuando uma ou duas pessoas) é a ausência de um predominante espírito de combate anti-colonial (mas não o anti-colonial vago, abstracto): contra o colonialismo português.
***
O Comité tunisiano é: Comité Tunisiano de Solidariedade dos Povos Afro-Asiáticos. Não aparece, no título, a palavra «Conferência».
Tu verás se será vantajoso munires-te de outras credenciais para outros organismos. 5 ou 6 credenciais é coisa que se pode bem dactilografar em 2 dias, o máximo.
Renovo o parecer de que a malta de Paris pode assinar as credenciais pelo MAC.
V.

Carta de Viriato da Cruz (Berlim?) a Lúcio Lara

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