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Documento distribuído em Luanda em 1959
aquando da Conferência da OIT
ATENÇÃO!
Aos Senhores Delegados Africanos à Conferência da Comissão Africana da Organização Internacional do Trabalho (Dezembro de 1959)
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Senhores,
Por altura da realização em Luanda desta sessão da OIT, os trabalhadores de Angola sentem-se no dever de chamar a vossa atenção para a sua situação e de vos apresentar um panorama resumido das reais condições económicas e sociais em que se encontram.
Nós, Trabalhadores de Angola, estamos certos que a Delegação Portuguesa, cuidadosamente escolhida pelo Govemo, se empenhará em vos esconder as vergonhosas condições de trabalho a que estão submetidos todos os Trabalhadores, brancos e negros; e em desviar a vossa atenção por meio da organização de visitas demagógicas, de passeios, banquetes, homenagens, etc.
Lamentamos que os nossos verdadeiros representantes, escolhidos por nós e depositários da nossa confiança, não possam estar sentados a vosso lado. Infelizmente ainda estamos submetidos a um regime fascista e a um colonialismo estreito, onde, desde há muito, foram suprimidas todas as liberdades, mesmo as sindicais.
Somos forçados a dirigir-vos este apelo sob um rigoroso anonimato e estamos certos da vossa compreensão.
Trazemos ao vosso conhecimento os factos seguintes:
1º – Existe em Angola uma nítida discriminação nas tarefas, trabalhos e salários entre um trabalhador negro e um trabalhador branco.
2º – A população de Angola é de cerca de 4.500.000 habitantes, dos quais:
137.000 BRANCOS
31.000 MESTIÇOS
32.000 NEGROS "CIVILIZADOS"
4.300.000 NEGROS "NÃO CIVILIZADOS"
a) A população branca é composta por: funcionários, empregados, operários, comerciantes e industriais, proprietários de fazendas, alguns pequenos cultivadores entre os quais os colonos.
b) A população mestiça é composta por alguns funcionários, alguns comerciantes, alguns proprietários de fazendas, operários e empregados.
c) A população negra "não civilizada" forma a grande massa dos trabalhadores nas fazendas, empresas industriais, estaleiros de obras públicas e os camponeses das aldeias indígenas deixados como reserva de mão-de-obra.
Esta população está submetida ao "Estatuto dos Indígenas" e não goza dos direitos de Cidadão.
3º – Para o território de Angola existem apenas dois sindicatos governamentais com sede em Luanda e com delegações nas cidades capitais de distrito.
Esses sindicatos são:
– Sindicato Nacional dos Empregados do Comércio e Indústria.
– Sindicato Nacional dos Ferroviários, Metalúrgicos e Motoristas.
4º – Apenas os trabalhadores brancos, mestiços e negros "civilizados" têm o direito de se inscrever nos sindicatos (existem delegações distritais que não permitem a filiação dos trabalhadores negros "civilizados").
5º – Todos os trabalhadores negros "não civilizados" estão excluídos de qualquer organização sindical ou de defesa profissional. O recrutamento (contrato) destes trabalhadores para as fazendas, fábricas, pescarias, estaleiros de obras públicas, etc.... é feito por intermédio dos chefes de posto ou dos administradores, perante uma autorização de recrutamento fornecida pela administração civil aos "angariadores" em título.
É inútil dizer-vos que na quase totalidade dos casos o contrato é forçado; o recrutamento voluntário é muito raro.
O salário por um dia de trabalho é de 3$30 (três escudos e trinta centavos) em média, para os trabalhadores negros "contratados".
Em 1958 foram pagos 340.818.000$00 a 330.053 trabalhadores "contratados", por 26 dias de trabalho por mês. A este salário em dinheiro devemos acrescentar o valor da alimentação do trabalhador, que raramente ultrapassa os 2$50 a 3$00 por dia.
Esta alimentação é sempre má do ponto de vista alimentar (farinha de mandioca ou milho, e por vezes um pouco de peixe seco e feijão).
Do seu salário em dinheiro, o trabalhador negro ainda tem que retirar o imposto, que é de 245$00 por ano, ou seja cerca de 25% do seu salário anual.1
Não existe qualquer dúvida sobre a existência de trabalho forçado.
7º – Também existe em Angola o trabalho forçado para as mulheres e as crianças, sobretudo para a conservação das estradas do interior, sem qualquer salário nem alimentação.
8º – No respeitante aos dois sindicatos governamentais dos trabalhadores brancos e negros "civilizados" basta assinalar que o Presidente do Conselho Geral e o Presidente da Direcção, os dois órgãos que dirigem os sindicatos, são nomeados pelo Governador Geral e pelo Ministro do Ultramar, e não eleitos pelos trabalhadores.
9º – Não existem contratos colectivos de trabalho, nem segurança social, nem subsídio de família, nem subsídio de desemprego, nem pensões de velhice ou invalidez.
10º – Para a mesma categoria profissional, o trabalhador mestiço e negro "civilizado" ganha cerca de metade do salário do seu camarada branco.
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Eis os factos sobre os quais os representantes do Governo guardarão o mais completo silêncio, ou, na impossibilidade de o fazerem, conversarão "paternalisticamente", como é seu hábito em todas as assembleias onde a sua presença se faz sentir.
Mas a realidade é bem diferente: ela é a face mais cruel e mais desumana da exploração do homem pelo homem.
Permitimos sugerir-vos o seguinte:
1º – Peçam à delegação portuguesa elementos completos sobre as condições de trabalho dos trabalhadores negros, propondo-lhe que traga:
a) Um exemplar do "Estatuto dos Indígenas".
b) Os impressos publicados pelos serviços de Administração Civil utilizados como registo dos trabalhadores contratados à força para irem trabalhar nas fazendas, fábricas, estaleiros, etc…. Estes registos são preenchidos pelos chefes de posto ou pelos Administradores, e neles são especificados os homens, mulheres e crianças deslocados. Nestes registos as mulheres e crianças figuram sempre como família dos homens contratados.
c) Um exemplar das licenças de contrato emitidas pela autoridade administrativa em que vem especificado o número dos trabalhadores negros que cada fazendeiro ou empresário tem o direito de empregar nas diferentes regiões do território.
Estas regiões são previamente designadas pelo Governador Geral, exactamente aquelas em que a população negra é mais numerosa.
Esta população é assim arrancada às suas aldeias, às suas famílias, às suas lavras, por períodos nunca inferiores a 8 meses.
d) Um exemplar das folhas de salários pagos aos trabalhadores “contratados”. Essas folhas também são fornecidas pela autoridade administrativa.
e) Um exemplar do anuário estatístico de Angola. Já existe o de 1958.
2º – Peçam à delegação portuguesa para que vos dê a possibilidade de fazerem visitas surpresa às fazendas, pescarias, fábricas, estaleiros, etc....
Por exemplo às fazendas de café e de sisal, às plantações de cana-de-açúcar (tem a fazenda "Tentativa" a menos de 60 km de Luanda e a do "Bom Jesus" mais ou menos à mesma distância), às pescarias dos arredores de Luanda, aos estaleiros do Caminho-de-Ferro do Congo, às minas da companhia de diamantes de Angola ou da companhia do manganês, aos estaleiros da barragem de Cambambe, a 200 km de Luanda.
Observem no local as condições de alojamento, de vestuário, de alimentação, os procedimentos de trabalho, o esforço físico exigido aos trabalhadores e o seu desgaste. Perguntem sobre os salários que são pagos.
3º – Peçam à delegação portuguesa:
a) Um exemplar dos estatutos dos sindicatos governamentais, pelos quais poderão verificar que os sindicatos se transformaram mais em "mutualidades" e que as suas actividades praticamente se limitam à assistência médica.
Os sindicatos não possuem um carácter de organizações de massas como nos outros países.
b) Informações detalhadas sobre os salários dos operários e empregados brancos, mestiços e negros "civilizados" e os índices do custo de vida em Angola.
c) A última tabela dos salários mínimos (que se aplica unicamente aos trabalhadores brancos) publicada em Agosto último pelo Governo Geral.
Desde 1947 não tinha havido aumento do salário mínimo.
d) Uma nota detalhada com os valores médios das rendas de casa, dos preços dos bens de consumo alimentar, do vestuário, do calçado, dos medicamentos. Constatarão a insuficiência dos salários e a situação difícil em que se encontram também os trabalhadores brancos.
A sub-alimentação torna-se uma regra para a classe operária.
O alojamento reduz-se muitas vezes às garagens sub-alugadas ou às pequenas casas construídas clandestinamente nos bairros negros da periferia, muitas vezes sem água, sem electricidade, sem as mais elementares condições de higiene e de defesa contra o clima.
Peçam para consultar os números sobre a assistência médica dos sindicatos – enormes – que vos mostrarão nitidamente a que ponto a doença existe entre os trabalhadores brancos.
4º – Peçam à delegação portuguesa que vos forneça os eloquentes dados sobre o ensino nas escolas públicas; constatarão que 98% da população angolana é iletrada.
Existem cerca de 750.000 crianças em idade escolar, o número de crianças matriculadas nas escolas públicas e privadas é de cerca de 20.000; nas escolas das missões religiosas contam-se cerca de 38.000 crianças negras.
Há pois 692.000 crianças que nunca frequentarão uma escola.
5º – Peçam à delegação portuguesa que vos forneça dados sobre o desemprego. Não existem estatísticas oficiais.
O jornal "A Província de Angola" de 27 de Outubro último assinalava cerca de 29.000 desempregados, brancos, mestiços e negros "civilizados".
A população "civilizada" compreende cerca de 200.000 indivíduos (funcionários, comerciantes, fazendeiros, industriais, os colonos, as profissões liberais) e assim se compreende imediatamente que estes 29.000 desempregados representam uma percentagem muito elevada em relação à classe trabalhadora.
Evidentemente que não existe nem subsídio de desemprego nem centro de desemprego.
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Pelo que acabámos de assinalar, facilmente se pode entender o elevado grau de exploração a que estão sujeitos os trabalhadores de Angola e a indignidade da sua situação.
Um regime colonial sem escrúpulos permitiu à classe patronal benefícios fabulosos na agricultura, na indústria e no comércio. Mas a crise económica e financeira que decorre das condições do mercado internacional e da política colonial de miséria do Governo, começa a rebentar com todas as estruturas do território. As consequências mais pesadas desta crise cairão fatalmente e sobretudo sobre os ombros dos trabalhadores, negros e brancos.
Contudo o Governo abafa os protestos, esconde a realidade, defende o seu poder absoluto por meio de uma censura severa à imprensa, pressões administrativas e repressão policial.
Nenhuma liberdade é permitida ao povo de Angola e os trabalhadores, quer sejam negros ou brancos, são particularmente vítimas da violência governamental.
– Considerando que a Declaração de Filadélfia afirma que todo o ser humano, seja qual for a sua raça, a sua crença ou o seu sexo tem direito ao progresso material e ao desenvolvimento espiritual, na liberdade e na dignidade, com segurança económica e oportunidades iguais.
– Considerando por outro lado que a discriminação representa uma violação dos direitos enunciados pela Declaração Universal dos Direitos do Homem.
Todo o conteúdo do artigo primeiro e suas alíneas e do artigo sexto da Convenção não são respeitados pelo Governo português.
Senhores Delegados,
Os autores desta exposição, trabalhadores de Angola, estão legitimamente inquietos acerca do seu futuro, da sua dignidade profissional, dos seus direitos como homens.
Para a esmagadora maioria dos trabalhadores, nomeadamente para os trabalhadores negros, as condições de trabalho, os muito baixos níveis dos salários, a subida anual do custo de vida, os sinais evidentes da crise, levam-nos a considerar como necessidade urgente:
a) Desmascarar perante esta assembleia da OIT a nefasta política de miséria do Governo português.
b) Reclamar a vossa intervenção para a abolição efectiva do trabalho forçado, o aumento dos salários dos trabalhadores negros, o respeito pelo princípio "a trabalho igual, salário igual".
c) Reclamar a vossa intervenção para que sejam restabelecidas imediatamente as liberdades cívicas e sindicais.
Confiamos aos Senhores Delegados a nossa intervenção para que forcem o Governo Português a respeitar escrupulosamente a convenção da OIT, como os vossos Países se esforçam por o fazer.
E obrigá-lo a declarar-se indigno de pertencer a esta organização.
OS TRABALHADORES DE ANGOLA
«Faites attention...» (Mensagem aos Delegados Africanos à Conferência Da Comissão Africana da OIT).Este documento foi publicado clandestinamente pelos «trabalhadores de Angola» para a Conferência Africana da OIT - Luanda (Dezembo 1959)