Carta de Joaquim a «Meu caro mano»

Cota
0026.000.019
Tipologia
Correspondência
Impressão
Dactilografado
Suporte
Papel comum
Remetente
Joaquim Pinto de Andrade
Destinatário
Mário de Andrade
Data
Idioma
Conservação
Bom
Imagens
2
Observações

Foi publicado no 2º volume de «Um amplo movimento…»

 26/X/61 Meu caro mano É com a maior saudade que te traço estas breves linhas, aproveitando os bons ­préstimos de um amigo que levará esta carta. Como sabes, estive preso já duas vezes. A 1ª de 25 de Junho a 8 de Novembro de 1960, uma semana em Luanda e o resto do tempo no Aljube em Lisboa, para onde fui levado de avião militar. Posto em liberdade ­condicionada, foi- -me fixada residência na ilha do Príncipe, onde permaneci até 25 de Abril 1961. Na madrugada de 25 de Abril, às 3h., fui acordado por um agente da PIDE com a ordem de o seguir. Não me foi dada qualquer explicação. Seguimos logo de avioneta para S. Tomé onde tomámos um avião militar para Lisboa. De novo atirado para Aljube, ali permaneci até 19 de Agosto p.p., tendo-me sida então fixada residência no Mosteiro Beneditino de Singeverga, a uns 60 km do Porto, após ter passado ainda uma noite na cadeia desta cidade. Do Mosteiro não posso sair, e estou proibido de pregar e ouvir confissões. Contudo lecciono Exegese bíblica aos monges do curso de Teologia e dou aulas de Francês ao 3º, 4º e 5º anos no Seminário Menor anexo ao Mosteiro. Motivo das prisões. Primeira prisão: a) uma carta que te escrevi, na qual te dava conta das prisões dos nossos amigos, te anunciava as pressões feitas no sentido da minha prisão também, e te comunicava os motivos do processo que te era instaurado para seres julgado à revelia, o que aliás não se chegou a fazer (n.b. A carta foi ­apreendida nas mãos de um moço que a devia levar ao Congo, mas que infelizmente foi preso antes de atravessar a fronteira). – b) Uma reunião tida com o Agostinho Neto e mais 3 moços, na qual se discutiu a situação dos presos políticos e o auxílio a prestar-lhes e às suas famílias. – Segunda prisão: Não me foi feita nenhuma acusação precisa, nem me foi dada qualquer explicação. Só aqui no Mosteiro (por conseguinte 5 meses depois) é que vim a saber, por carta confidencial de quem estava seguramente informado na fonte, qual o motivo desta 2ª. prisão. Ei-lo: Depois de começados os acontecimentos de Angola, surgiram duas vezes barcos estrangeiros de pesca perto das costas da ilha do Príncipe, bem como um avião que sobrevoou a ilha e regressou à costa africana. Tanto bastou para que os roceiros da ilha temessem que de algum desses barcos pudesse desembarcar um punhado de homens que, a ordens tuas (sic), viessem vingar a minha prisão e libertar-me. Por isso insistiram junto do Governador de S. Tomé e junto do Governo Central de Lisboa, para que eu fosse dali transferido. Mas, não se ­contentando com uma transferência, acharam mais seguro meterem-me de novo na cadeia do Aljube, sem qualquer explicação. Nem em Luanda, nem em Lisboa, nunca me foi permitido contactar com os meus advogados, não obstante estarem legalmente constituídos e terem eles desenvolvido todos os esforços para poderem falar comigo. – Estive sempre em cela isolada. O Agostinho Neto (que foi meu vizinho de cela da primeira vez) foi mandado com ­residência fixa para Cabo Verde, mas consta-me agora que foi de novo preso. Não sei onde se encontra neste momento. – Entre outros amigos e parentes, também estiveram presos a Arminda Faria e o marido da nossa irmã Chiquita (este por duas vezes), o Mário António, etc. Já estão em liberdade assim como Diógenes Boavida. Dos do processo dos 50 foram julgados e condenados dois grupos, como já deves saber. Os restantes (entre os quais o Ilídio Machado) aguardam julgamento, sempre presos, há mais de 2 anos. Dos outros padres nativos que estiveram presos, quatro (entre os quais Monsenhor Manuel das Neves) estão também com residência fixa em diversas casas religiosas do norte de Portugal. Um, o Padre Domingos Gaspar, pároco de N. Srª. da Muxima, continua no Aljube. Dos acontecimentos de Angola a partir de Fevereiro de 1961, nada te conto, pois deves estar mais bem informado do que eu. Aqui só conseguimos saber o que se filtra através da censura. – Eu passo bem de saúde e a disposição moral é excelente. Confiamos no futuro da nossa terra, através de todas as dores e lutas. As nações, como os indivíduos – dizia José Marti – nascem no sangue e nas lágrimas. Tenho seguido, na medida do possível, o vosso trabalho, no qual confiamos. – A nossa família está toda boa. – Um abraço de saudades ao Viriato, Lúcio, Amílcar, Américo, Eduardo Santos e demais amigos. Para ti vai, no mais afectuoso abraço, toda a saudade e amizade do teu Joaquim Os Padres Nascimento, Vicente e Franklin não chegaram a ser presos mas estão com residência fixa em Lisboa. Segue cópia do meu depoimento prestado no fim dos interrogatórios em Luanda. Escreve algo, mas com prudência. Meu endereço: Mosteiro de Singeverga – Negrelos – Portugal – Vai uma foto para ti. As barbas são uma recordação da cadeia e só as cortarei quando raiar a liberdade. Um “Kandandu” do teu Joaquim

Carta de Joaquim Pinto de Andrade a «Meu caro mano» (Mário de Andrade), sobre prisões em Angola

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