Carta de Viriato da Cruz ao Comité Director do MPLA

Cota
0038.000.031
Tipologia
Correspondência
Impressão
Dactilografado
Suporte
Papel comum
Remetente
Viriato da Cruz
Destinatário
Comité Director do MPLA
local doc
Léopoldville (Rep. Congo)
Data
Idioma
Conservação
Razoável
Imagens
5
Observações

Foi publicado no 2º volume de «Um amplo movimento…»

[com emendas de V. Cruz]1

[Apontamento à mão: Rec. 31.10.62]
Léopoldville, 30 de Outubro de 962
Ao Comité Director do MPLA
Léopoldville
Compatriotas,
Já sei, por experiência, que a minha presença à reunião de hoje do Comité Director seria mais do que inútil nas suas consequências práticas. Por isso, julguei mais prático e prudente enviar-vos a presente carta do que prestar-vos declarações à viva voz.
Desejo, no entanto, pedir aos compatriotas que não seguiram de perto o desenrolar dos acontecimen­tos, de que constitui uma reacção legítima a decisão que comuniquei ao Comité Director na carta de ontem, desejo pedir a esses compatriotas que não tomem a minha ausência à reunião de hoje como falta de consideração às suas pessoas.
Os factos e as razões que me levaram, depois de amarga experiência e longa reflexão, à decisão que vos comuniquei ontem não são, nem poucos, nem os devo expor sem uma análise detalhada – o que, como compreendeis, não caberia no âmbito desta carta que vos devo remeter dentro de poucas horas.
No entanto, vou expor-vos, algumas das razões que, atentando contra os princípios revolucionários do nosso Movimento e contra a minha dignidade humana, me levaram a não pactuar com a desonestidade e a tomar a decisão de me afastar imediatamente da República do Congo.
1 – O MPLA está nas mãos de liquidacionistas: Pouco depois do fracasso das negociações com o FNLA, E. Santos e A. Neto tiveram o desplante de defender – na presença do V. Lopes, do Graça Tavares e de mim – a tese de se dissolver o MPLA depois de a UPA nos dar “garantias” de aceitar os princípios programáticos defendidos pelo MPLA e de admitir nos seus órgãos directivos dirigentes do MPLA.
Se, por hipótese, a UPA aceitasse os princípios do Programa do MPLA e a inclusão no seu aparelho directivo de dirigentes do nosso Movimento, poderíamos considerar isso como “garantias” e correr assim o risco de dissolver o nosso Movimento? E se os dirigentes da UPA denunciassem, mais tarde, os acordos passados connosco, sob a acusação, por exemplo, de que os dirigentes do ex-MPLA, incluídos na UPA, eram subversivos ou, como se diz, comunistas?
O primeiro Comité Director do MPLA nunca foi contra a unidade nem nunca propôs a unidade com a UPA e outros partidos angolanos sobre uma base hipócrita ou táctica. Aquele Comité Director agiu sempre sinceramente – porque com realismo – pela unidade. Mas assim como não podíamos nem podemos admitir a unidade a qualquer preço, não podíamos nem podemos aceitar a dissolução do MPLA na base do desejo subjectivo de dirigentes do MPLA.
Uma unidade viável e honrosa só poderá ser feita na base das condições objectivas dos partidos angolanos. E essas condições objectivas só poderão ser estabelecidas com a análise da política praticada até hoje pelos ditos partidos. Ora, a análise da política que a UPA vem praticando – tanto no interior de Angola como no exterior – mostra-nos suficientemente que entre ela e o MPLA não há uma simples desinteligência, mas uma oposição de princípio. Sobre esta oposição de princípio pode-se, efectivamente, construir uma determinada unidade com a UPA, mas não se poderia nem se pode, por enquanto, admitir, mesmo por hipótese, a tese atrás referida, da viabilidade da dissolução do MPLA.
Ninguém apanha as ideias no ar e ninguém as defende sem qualquer determinismo. Porque é, então, que E. Santos e A. Neto chegaram a defender essa tese? As causas determinantes dessa atitude não me parecem inocentes. E a prova está na divisão que se vem cavando dentro do Movimento por acção daque­les dois compatriotas e de mais uns tantos.
Afinal de contas, em que moral se baseiam compatriotas que defendem a dissolução do MPLA com vistas à unidade com a UPA, quando eles, por outro lado, fomentam a divisão no seio do MPLA?
2 – O MPLA transformou-se num asilo de anti-MPLA, de intriguistas e de caluniadores: E. Santos fez e vem fazendo um profundo e irresponsável trabalho de intriga. E a última ideia-veneno que ele lançou não é [sic] a de que o MPLA foi fundado em Conakry e não em Angola.
No entanto, esse intriguista, não só continua impune, como joga um papel cada vez mais activo na política do Movimento.
O Azevedo – inebriado pela actividade intriguista que se vinha fazendo – lançou uma calúnia contra o signatário desta carta No decurso de uma reunião, ele ­confessou-se autor dela. No entanto, o bailarino M. Andrade – querendo cobrir um caluniador – fez tudo para impedir o acareamento do Azevedo com o Zé Miguel. E o A. Neto, não só não condenou até hoje a atitude do Azevedo, como teve ainda a ousadia de, já depois de o Azevedo ter pedido a sua demissão de membro do MPLA, propor a reintegração do Azevedo nas funções de dirigente.
E seria possível admitir que é por bondade que o Azevedo habita ainda uma casa do MPLA, se, por outro lado, não houvesse a seguinte monstruosidade moral: o signatário, que tem a mulher grávida, não recebe, há quase dois meses, o seu subsídio.
3 – O Comportamento de A. Neto constituiu uma dolorosa decepção para o ­signatário desta carta: Quem conheça os cheques em branco que passei ao carácter e à personalidade de A. Neto, quem conheça os elogios que teci publicamente à sua pessoa e o interesse, a actividade que despendi em favor da sua libertação e da projecção dos seus trabalhos literários, quem conheça pelo menos isso pensará que eu já havia conhecido antes A. Neto. Na verdade, comecei a conhecer A. Neto a partir do dia em que ele chegou a Léopoldville.
Desde a sua chegada, A. Neto nunca teve comigo uma conversa sobre a política passada do Movi­mento e sobre as minhas actividades como secretário-geral do MPLA. No entanto, ele teve o atrevimento de, em reuniões oficiais do Movimento, julgar injustamente o desempenho das minhas actividades como secretário-geral, de considerar-me um “grande individualista” e de lançar a excomunhão de que não trabalharia comigo.
Mais: ele ousou declarar, em 12 do mês corrente, na presença de 17 militantes do MPLA, que o M. Andrade se afastava propositadamente de Léo para não trabalhar comigo. Ora, o carácter falso dessa afirmação torna-se evidente se tivermos em ­consideração pelo menos os seguintes factos:
a) Andrade esteve uma vez em Léo em 1961, na altura da inauguração do nosso Bureau, e partiu de Léo com o objectivo de se dirigir à ONU.
b) Em fins de Dezembro de 1961 regressava E. Santos dos USA com a notícia de que se soubera nesse país que havia um plano de assassinato, no Congo, de Andrade e de mim, com a cumplicidade de certa personalidade congolesa.
c) Na primeira quinzena de Fevereiro de 1962, estive em Rabat com Andrade que me disse que esperaria naquela cidade pela chegada de Ben Bella (fins de Março).
d) Em 14 de Março fui a Accra encontrar-me com E. Santos que fora enviado pelo Comité Direc­tor. Nesse encontro ficou estabelecido que eu podia voltar a Léo com a Maria Eugénia, depois de uma viagem que faria à Europa em fins de Março. Em 27 de Abril, Andrade partiu comigo de Conakry com destino a Léo. Em 30 Abril cheguei a Léo e Andrade nos primeiros dias de Maio.
e) Em fins de Maio, Andrade partiu de Léo com destino à Conferência dos ­Combatentes em Accra.
f) Na altura da remodelação do Comité Director, em vez de Andrade ter tido a franqueza de me exprimir os seus sentimentos em relação a mim, ele, pelo contrário, pediu-me, em reunião oficial que continuasse a assistir o novo Comité Director.
Ora, tendo em conta os períodos de estadia de Andrade e de mim no Congo, tendo em conta as missões e as viagens que levaram Andrade a ausentar-se do Congo, tendo em conta que Andrade não esteve no Congo durante os quatro meses em que estive ausente deste país, somente por invenção maldosa se pode justificar as ausências de Andrade, de Léo, pela minha presença nesta cidade.
4 – Não só faltas de camaradagem, mas ainda actos de deslealdade em relação à minha pessoa: E. Santos, na sua actividade de intriguista, acusa-me de ter infringido, como secretário-geral, as regras democráticas nas actividades do primeiro Comité Director.
Mesmo que o primeiro Comité Director do MPLA me venha a apontar mais tarde (pois até hoje não o fez) as infracções de que me acusa E. Santos, nenhum militante honesto poderá deixar de se fazer uma ideia do “carácter” e do “espírito revolucionário” desse oportunista que gosta de se mascarar com a capa de marxista-leninista.
Se E. Santos nunca esteve de acordo com a minha maneira de trabalhar como secretário-geral, porque é que ele nunca teve a iniciativa e a franqueza de me fazer uma crítica em reunião do Comité Director? Se as críticas que E. Santos difundia a meu respeito, fora das reuniões do Comité Director, eram compartilhadas pelos restantes membros deste órgão, porque é que os meus camaradas de direcção nunca, em sessão do Comité Director, me criticaram e tomaram medidas concretas a meu respeito? Se eu cometi crimes ou erros prejudiciais ao Movimento, porque é que os meus camaradas de direcção nunca tiveram a franqueza revolucionária de me destituírem do posto de secretário-geral? Como todo o militante deve saber “O secretário-geral do MPLA é um membro do Comité Director eleito no seio deste” (Art.º 16 do Regulamento Interno) – o que quer dizer que, a todo o momento, o Comité Director tem competência para destituir o secretário-geral (bem assim como o Presidente) das suas funções e eleger um outro.
Como o Marxista-leninista E. Santos talvez saiba, esse “estilo viciado, pequeno-burguês no traba­lho”, manifesta-se também sob as seguintes formas: “Permitimo-nos uma crítica de ânimo leve, em privado, mas não colocamos resolutamente as questões diante das organizações; nada se diz pela frente, mas fala-se muito por trás; nas ­reuniões fica-se calado, mas depois das reuniões fica-se no falatório. Em vez dos princípios de trabalho colectivo, deixamo-nos levar pela indisciplina. – Não lutamos contra as concepções erróneas, não nos opomos a elas no interesse da unidade, no interesse do movimento, pela comodidade do trabalho mas, ao mesmo tempo, dedicamo-nos a ataques pessoais, intrigas, ajustes de contas pessoais, vingamo-nos pessoalmen­te.” [citação em francês no original]
Tais são algumas das manifestações do liberalismo apontadas pelo camarada de ideias de E. Santos, Mao Tsé Tung. “Num colectivo de revolucionários, o liberalismo é muito prejudicial; é uma espécie de princípio dissolvente que conduz à ruptura da unidade, ao enfraquecimento do espírito de equipa, à passividade no trabalho, à debandada ideológica. O liberalismo leva a fazer desaparecer das fileiras dos revolucionários a solidez da organização e da disciplina, a fazer desaparecer a possibilidade de aplicar a linha política com espírito de continuidade e até ao fim e a organização do partido separa-se das massas que dirige. Esta é uma tendência extremamente prejudicial.
O liberalismo tem a sua origem no seio duma categoria da pequena-burguesia ávida de lucro, egoísta, que coloca em primeiro lugar os seus interesses pessoais e relega para segundo plano os da revolução. É aí que se gera o liberalismo, na ideologia e na política e nas questões de organização. O liberalismo é uma manifestação do oportunismo; está em completa contradição com o marxismo. O liberalismo é a passividade; objectivamente ajuda o inimigo. É por isso que os nossos inimigos ficarão contentes se o conservarmos entre nós. Tal é a natureza do liberalismo, não deve haver lugar para ele nas fileiras dos revolucionários.”.” [citação em francês no original] (Mao Tsé Tung)2.
E. Santos gosta de se dar ares (junto dos ignorantes ou bajuladores, subentenda-se) de ser um pioneiro do MPLA e um revolucionário que muito fez pelo Movimento. Ele chegou, no entanto, a Co­nakry em Dezembro de 1960 (o histórico ano em que uma série de países africanos se tornaram independentes), e em África sempre fez política nas horas vagas, depois de cumprir as obrigações dos seus empregos que lhe permitiam não se esquecer do nível de vida que sempre gozou.
5 – Quase paralisia da actividade do Movimento, pela usurpação de poderes, pelo egoísmo pequeno-burguês, pela vaidade e pela ambição de uma glória fácil: Praticamente, hoje, no MPLA, o poder e os fundos concentram-se, ilegalmente, nas mãos de A. Neto e Andrade, assistidos por E. Santos, a “eminên­cia parda” do regime ridículo em que se pretende manter o Movimento. Na busca de uma glória fácil, esses três angolanos intrigam, cometem ilegalidades, subornam, perseguem militantes que pensam estar ligados a mim e tentam pôr o Movimento sob a sua direcção, pela táctica do facto consumado.
Vendo as coisas objectivamente, e se admitirmos que o ser do homem é produto da sua existência e das suas relações sociais habituais, nada nos deve espantar. Já Marx dizia que “o que faz deles represen­tantes da pequena-burguesia é que eles não podem intelectualmente ultrapassar os limites que a pequena-burguesia não pode ultrapassar na vida, é que eles são teoricamente levados aos mesmos problemas e às mesmas soluções aos quais os empurram, praticamente, os seus interesses materiais e a sua situação social.”
A tendência que manifestam ferozmente para adquirir uma glória fácil à custa do trabalho dos outros, em nada é contrária à tendência dos exploradores destas sociedades em que temos vivido, ou à tendência do colono que pretende construir a sua roça e a sua importância sobre a expropriação das lavras do nosso produtor agrícola.
Luta pela vida à maneira capitalista, exploração e expropriação – tal é a universidade em que, infelizmente, vem cursando a nossa gente.
6 – Eis alguns factos com que pretendi ilustrar a tragicomédia que vai pelo Movimento. Muito porém teria para contar.
Aproveito a ocasião para repetir que nunca ambicionei o lugar de Presidente do MPLA, e para lembrar que fui eu quem espontaneamente largou o posto de secretário-geral.
Desde há muito que tenho plena consciência (que mostrei por actos) de que aos angolanos negros se devem dar todas as oportunidades, e que os postos importantes dos movimentos nacionalistas angolanos deverão ser preenchidos, tanto quanto possível, pelos representantes autênticos da grande comunidade angolana: a honrada e trabalhadora comunidade negra de Angola. Mas, compatriotas, por respeito – que muito tenho – à comunidade negra de Angola, não serei eu quem vai ajudar a impingir-lhe os líderes negros que não estiverem à altura do grande destino que ela merece. As qualidades de carácter são requeridas em todas as raças como critério de mérito. E eu me oponho e opor-me-ei energicamente a todos os predestinados à tirania, a todos os calcadores da dignidade alheia, a todos os oportunistas, a todos os aproveitadores do trabalho alheio, seja qual for a sua raça ou o prestígio que tenham adquirido por obra própria e por graça alheia.
Mantenho a minha decisão de partir da República do Congo. Esperamos – eu e a Maria Eugénia – que o Movimento financie as nossas passagens.
As melhores saudações e bom êxito!
[assinatura de Viriato Cruz]

Carta de Viriato da Cruz ao Comité Director do MPLA (Léopoldville)

A publicação, total ou parcial, deste documento exige prévia autorização da entidade detentora.

Nomes referenciados