Carta de Viriato da Cruz a Matias Miguéis

Cota
0048.000.009
Tipologia
Correspondência
Impressão
Dactilografado
Suporte
Papel comum
Remetente
Viriato da Cruz
Data
Idioma
Conservação
Bom
Imagens
5
Observações

Foi publicado no 3º volume de «Um amplo movimento…»


[Escrita em Rabat] 11.3.63
Caro Matias,
Sinceros votos de saúde!
Até à data, escrevi-te duas cartas. E não te tenho escrito mais vezes porque não tenho nenhuma confiança nas vossas caixas postais (que são utilizadas em sociedade) e porque ninguém me acusa recepção das cartas que escrevo. Agradeço, pois, para meu governo, acusar-me recepção das minhas cartas.
1 – Tenho o prazer de anunciar-te que no dia 2 do mês corrente, a Maria Eugénia deu à luz uma menina, que dizem parecer-se muito comigo.
2 – No teu telegrama, que agradeço, mas que não me encontrou aqui, dizes que a situação começa a complicar-se. Na falta de informações mais detalhadas, não pude fazer uma ideia em favor de quem e contra quem a situação se complica.
3 – Estou decidido a ficar em África e não penso abandonar a luta em favor de uma libertação autêntica do nosso povo.
Espero que os acontecimentos que se vêm dando desde há três meses vos tenha mostrado, por vossa própria experiência, as causas políticas da actividade divisionista e odiosa que, há mais de seis meses, se desencadeou dentro do vosso Movimento, e que vem mantendo o estado de divisão, desde o seu nascimento, o nacionalismo angolano em geral.
Nada pode libertar-se da sua própria natureza. A natureza do colonialismo é de oprimir e explorar até ao fim. A natureza do povo é de viver em liberdade e paz autênticas. Mudando embora de formas e de métodos de opressão e de exploração, o colonialismo persegue sempre o seu objectivo vital: manter os seus privilégios nas colónias. No passado, o colonialismo impôs-nos a dominação directa e a “paz da opressão e da exploração coloniais”, a “paz dos cemitérios”. Desde há mais de dois anos, o colonialismo impõe-
-nos “a guerra injusta e cruel”. Porque esta guerra sai caro aos colonialistas e porque estes têm sido condenados pela opinião mundial, os colonialistas têm feito todos os possíveis por nos impor, ama­nhã, a “paz neocolonialista”. Para este efeito, tudo quanto os portugueses querem é encontrar um grupo de angolanos a quem eles entregarão o poder do Estado (o quadro administrativo, o exército, a polícia, os tribunais, etc.) e a quem eles confiarão a defesa e a guarda dos seus privilégios. Às concessões, que os portugueses farão a um grupo de angolanos dispostos a fazer esse “cariengue”, chamar-se-á “independência” de Angola.
Por outro lado, o grupo que usurpou a direcção do nosso Movimento marcha, desde há muito, em direcção dos desejos dos portugueses. Eles vêm repetindo que é preciso impedir que o Holden chegue ao Poder e que quem deve chegar ao Poder são eles; eles vêm-se esmerando em dar lições de moral ao povo, condenando principalmente o “racismo” (como ousaram escrever numa das resoluções da Conferência) que, segundo eles, o povo teria praticado durante a luta armada no norte; eles vêm declarando que a FUA é um “movimento naciona­lista formado por brancos, negros e mulatos” (como o Neto declarou na conferência de imprensa que deu em Paris, em 30 de Janeiro último); eles vêm colaborando com os chamados portugueses da oposição; eles transformaram a CONCP, a nossa representa­ção em Paris, o nosso bureau de Conakry em organismos ao serviço dos portugueses e onde os portugueses têm entrada franca e obtêm facilmente informações sobre as questões internas dos movimentos nacionalis­tas; etc. Tudo isto quanto eles vêm fazendo tem em vista fazer-lhes merecer a confiança dos portugueses, fazer-lhes passar por “nacionalistas pró-portugueses”.
Esse grupo não tem confiança nas massas populares, não deseja, no fundo, nenhuma revolução popular em Angola, porque eles têm profundos receios de que perderão os seus privilégios e não conse­guirão alcançar as suas ambições secretas.
Desde há muito que os portugueses vêm agindo para impor ao nosso povo a “paz neocolonialista”. Entre outros meios, eles vêm procurando utilizar os angolanos que mais se assimilaram a eles; vêm utilizando a corrupção, a introdução no seio dos movimentos nacionalistas de ideias neocolonialis­tas e contra-revolucionárias e de micróbios da intriga; eles vêm jogando ainda com os laços sentimentais e de interesses que ligam certos dirigentes à comunidade portuguesa, como sejam o casamento, a amizade e camaradagem profissional ou política, os bens e riquezas que alguns deixaram em Angola, etc. etc.
Alguns desses actuais dirigentes foram tão profundamente assimilados aos portugueses, que não passam, na verdade, de portugueses pintados de negro ou de castanho. Tenho, por exemplo, aqui na minha carteira uma carta que o Manuel Lima me escreveu em 29 de Agosto, quando me encontrava aqui em Rabat, da qual transcrevo as seguintes passagens: “Na verdade sinto-me decepcionado com o clima de sabotagem que se criou à volta do embarque da minha mulher. Como sempre que me ausento de Rabat acontecem estas incompreensões, faltas de cortesia e até uma espécie de hostilização surda, em relação à minha mulher, sou forçado a tirar conclusões graves, que me levam a rever energicamente a minha posição dentro do Movimento.”
“Sinto-me cansado desta situação e nem como Homem nem como Militante posso tolerar o sacrifício de destruição da minha família. Em nome de nenhum Povo ou Revolução o farei. Agradeço a boa-vontade que tens mostrado, mas sei perfeitamente que não existiria este problema se as coisas depen­dessem de ti.”
Não sei se tens conhecimento de uma carta que o Neto escreveu ao general Humberto Delgado, daí de Léopoldville, o ano passado, antes da Conferência. Essa carta veio publicada no jornal “Portugal Democrático”, Nº 68, de Janeiro de 1963. O jornal transcreve a carta nestes termos:
“O Presidente do MPLA escreve a Delgado.
“O Dr. Agostinho Neto, recentemente eleito presidente do MPLA, dirigiu ao General Humberto Delgado a seguinte carta:
“Excelência:
Recebi há poucos dias, com imenso prazer, a honrosa carta de V. Exa., datada de 25 de Setembro do ano corrente e endereçada para Marrocos.
O nome de V. Exa, que aprendi a admirar ainda em Portugal durante as inesquecíveis jornadas de luta pela democracia em 1958 e nos anos seguintes, é incontestavelmente uma garantia, não só para o povo português, como para nós próprios. O reconhecimento do nosso direito à autodeterminação permite que neste momento possamos considerar os portugueses oposicionistas como os aliados na guerra contra o governo fascista de Salazar.
Agradecendo as saudações enviadas através da carta de [V.] Exa, permito-me endereçar cordiais cumprimentos, e colocar-me inteiramente à sua disposição.
Sinceramente
a) Agostinho Neto”
A meu ver, esta carta poderá ajudar-vos a compreender melhor as causas políticas da crise que vem minando a unidade e a pureza dos princípios revolu­cionários do nosso Movimento. Não quero alon­gar-me numa análise a essa carta, pois estou certo de que notareis logo um dos traços da mentalidade do Neto: a subserviência aos chamados portugueses democratas. “Excelência” (como nos requerimentos que o africano ­escravizado era obrigado a dirigir ao “senhor administrador do concelho”); “imenso prazer...”; “honrosa carta de V. Exa...”; “permito-me endereçar cordiais cumprimentos a V. Exa...”
Para o Neto “a guerra” que o nosso povo vem travando é contra “o governo fascista de Salazar”. Esta tese falsa serve de base a toda uma prejudicial concepção política do problema colonial em geral e do problema angolano em particular. Quem admite que a guerra é contra o governo fascista de Salazar não pode deixar de concluir, logicamente, que o povo angolano e a oposição democrática portuguesa têm o mesmo inimigo comum, que o povo angolano e os oposicionistas portugueses devem situar-se no mesmo campo e colocar-se ao mesmo nível, que os nacionalistas angolanos deverão considerar os oposicionis­tas portugueses como seus aliados, que os nacionalistas angolanos deverão colaborar (abertamente ou secretamente) com os oposicionistas portugueses, que, se for instaurado um governo demo­crata em Portugal, a natureza do coloni­alismo em Angola atenua-se ou desaparece... Pôr o problema colonial nessa base é deslizar continuamente para o colaboracionismo, para a castração do movimento revolucio­nário popular. E é efectivamente o que se vem passando, desde algum tempo, dentro do nosso Movimento.
Os revolucionários angolanos fiéis ao povo devem denunciar e liquidar essa tese nociva. O centro, a essência, do problema colonial em geral é a distinção entre nações opressoras e nações oprimi­das. O povo português consti­tui uma nação opressora que, sejam quaisquer [sic] forem as atenu­antes que ele queira invocar em sua defesa, tem responsabilidades morais e políticas na dominação colonial que, desde há muito, pesa sobre os povos das colónias.
Os objectivos da luta dos democratas portugueses são diferentes dos objectivos da luta do povo angolano. Os democratas portugueses lutam contra “o governo fascista de Salazar”, mas o povo angola­no luta para se libertar do domínio de Portugal, que é uma nação opressora! Antes de Salazar subir ao poder, já Portugal era uma nação opressora, imperialista. E a experiência histórica dos governos democratas da França, Inglaterra, Holanda, etc., ensina-nos que um governo democrata burguês de uma nação opressora não é, nem pode ser, menos colonialista do que um governo fascista da mesma nação opres­sora. Quem fez as guerras na Indochina, no Quénia, na Malásia, na Argélia, etc..., senão os governos democratas de nações opressoras! E porque é que os portugueses haviam de constituir uma excepção a essa lei da história?
A chamada Oposição democrata portuguesa nunca fez nada de concreto (por actos, e não apenas por palavras) em favor dos povos coloniais e do povo angolano em luta armada há mais de dois anos. E os angolanos não deverão nunca contentar-se com o “reconhecimento verbal” do direito à autodeterminação feito por indivíduos de nações opressoras que se dizem democratas.
Finalmente, penso que nenhum angolano com bom-senso e com suficiente dignidade não pode deixar de considerar como humilhante e perigoso que um indivíduo que se diz Presidente de um movimento nacionalista como o MPLA “se permita... colocar-se inteiramente à sua disposição” (dele Delgado). Poderá o Movimento manter o seu bom nome de fidelidade ao povo tendo à sua frente um soldado às ordens do general Delgado?
Não pode lutar pela libertação de um povo um indivíduo que é espiritualmente um moleque dos portugueses, sejam estes democratas. Eis aí um exemplo de penetração de ideias neocolonialistas e contra-revolucionárias dentro do nosso Movimento, como eu já havia denunciado o ano passado.
4 – Penso que os filhos autênticos do povo angolano deverão penetrar-se profundamente da noção de que há duas espécies de guerra e duas espécies de paz. Há a “guerra colonial”, que é aquela que os portugueses desencadearam e vêm fazendo ao povo angolano. Há a “guerra popular”! que é aquela que o povo angolano deverá fazer cada vez mais fortemente, até à vitória final, contra a dominação portuguesa e dos lacaios dos portugueses. Há a “paz neocolonialista”, que [é] aquela que os imperialistas querem fraudulentamente impor ao povo angolano. E há a “paz do povo”, que é a paz da verdadeira independência, a paz que o povo pode conquistar somente através de um combate revolucionário.
Há, pois, dois caminhos diante do futuro imediato do povo angolano: o caminho da luta revolucionária popular, e o caminho do compromisso neocolonialista. Entre esses dois caminhos não há quaisquer ligações laterais, ou se é pela revolução do povo, pelo povo e para o povo, ou se é pelo neocolonialismo. Esses dois caminhos travam entre si uma luta de vida ou morte. Entre os angolanos que se situam nestes dois caminhos não pode haver quaisquer “harmonização de interesses”, porque os interesses do povo são incompatíveis com os interesses dos colonialistas antigos e novos.
5 – Soube da maneira como o Lara te tratou. Esses Laras, Santos, Videiras & Ca não são mais do que agentes, no seio do movimento nacionalista, do compromisso neocolonialista. Eles têm medo da vitória de uma verdadeira revolução popular em Angola. A missão deles, entre vós, é de fazer a aliança do cavalo e do cavaleiro. Para fazerdes uma ideia da formação do senhor Lara e do meio em que ele se educou, basta que vos lembreis de que ele teve ainda mais o “privilégio” de ser o cunhado do irmão do antigo ministro português da pasta da guerra, o coronel Santos Costa. Isto pode dizer muito.
Mas ele que se faz de tão honesto deveria lembrar-se de que, por exem­plo, em Dezembro de 1961, dei-lhe, como secretário-geral do Movimento, mais de mil contos a guardar, e que até hoje ele não me apresentou quaisquer contas sobre esse dinheiro do Movimento. Esta informação podes utilizá-la como argumento em tua defesa e para educação política dos militantes do Movimento.
Sei que o primo dele, Ernesto Lara, dirigente da FUA, passou aqui por Marrocos, há dias, a caminho de Léopoldville ou Brazzaville.
6 – A meu ver, sérios perigos adensam-se sobre a cabeça do povo ango­lano. O momento é muito grave, pois os imperialistas nunca dormiram nem dormem no afã de meter grilhetas de ferro nos pés do povo e de meter algemas de ouro nos pulsos dos traidores.
Tu e outros patriotas sinceros, verdadeiros filhos do heróico povo angolano, vós tendes grandes responsabilidades históricas quanto ao futuro de Angola. Vocês que têm totais facilidades para abordar o povo e para dirigi-lo na base da confiança que ele faz em vocês, deveis abrir os olhos do povo, fazê-lo compreender os perigos que o esperam, mostrar-lhe a sua imensa força, inculcar-lhe o sentimento de que ele, o povo, é o único dono de Angola, e que ele, e só ele, pode lutar pela sua libertação autêntica. Deveis fazer uma política de massas, isto é, deveis ligardes [sic] intimamente e constantemente às massas, fazer delas o vosso confidente mais seguro, o vosso apoio mais fiel. A maior força de Angola está no meio do seu povo. Nada pode vencer e enganar a um povo esclarecido e disposto a lutar até vencer. Esclarecei, não só as pessoas instruídas do povo, mas principalmente as pessoas mais exploradas, aquelas que andam com os pés descalços e com a camisa esfarrapada, aqueles que, com a luta, nada têm a perder senão as suas grilhetas. Esses valentes camponeses e trabalhadores explorados e oprimidos – eis o exército invencível de Angola, a vontade sequiosa de uma libertação autêntica. Foram gente como essa que lutou e luta nos campos de batalha de Angola. Ligai-vos às massas! Confiai inteiramente na sua força! Podeis ter a certeza de que nem só um grão da semente da verdade, lançada no meio do povo, se perderá! Cedo ou tarde, todas as sementes da verdade libertadora frutificarão!
7 – Estou também interessado em falar-te pessoalmente, e trabalharei nesse sentido.
8 – Na sua actividade de espalhar mentiras e de dividir os angolanos, o Neto disse a várias pessoas que tu tinhas voltado a colaborar com o actual “comité director”; a outros disse que tu não pediste a demissão por razões políticas, mas sim porque precisavas de descansar (isto é o que diz o Santos tam­bém). O Neto e os seus capangas fazem tudo para que os angolanos não me contactem. Aqueles que – como o Benigno Vieira Lopes – me contactavam sofrem pressões de vária ordem. O Neto disse a alguns angolanos que eu não podia andar a-par dos assuntos do Movimento, porque eu não aceitava “os princípios do Movimento”; a outros enganou dizendo que eu colaborava com o actual “comité director”. O cretino do Desidério veio dizer que eu recusara a trabalhar para o Movimento, tanto mais que “o meu lugar” continua aberto aí em Léo. A outros, esse mesmo Desidério foi dizer que não se compreen­dia a razão por que havia militantes que me apoiavam. Numa conferência que o Neto fez aqui em Rabat, em 6 de Fevereiro, para comemorar os acontecimentos de Luanda, ele teve a lata de declarar que “Agostinho Neto, Mário de Andrade, Matias Miguéis e outros camaradas tinham sido os fundadores do movimento nacionalista angolano”.
Tal é o carácter dessa gente.
Cumprimentos a todos os camaradas e amigos.
O meu melhor abraço para ti.
[rubrica de V. Cruz]
[Nota manuscrita: P.S. – Acho que não deves abandonar o povo, não te deves isolar das massas. O que os colonialistas e os seus capangas querem é precisamente que indivíduos como tu abandonem as massas e deixem esses entregues ao “tshombeísmo”. rubrica de V. Cruz]

Fotocópia da Carta de Viriato da Cruz a Matias Miguéis

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