Carta de Florentino Duarte a Jonas Savimbi

Cota
0064.000.012
Tipologia
Correspondência
Impressão
Dactilografado
Suporte
Papel comum
Remetente
Florentino Duarte
Destinatário
Jonas Savimbi
Locais
Data
Idioma
Conservação
Razoável
Imagens
6
Observações

Foi publicado no 3º volume de «Um amplo movimento…»

Lausanne, 15 de Julho de 1964
Jonas,
Junto esta carta à de 11 de Julho da qual te tinha anunciado o envio iminente. Com efeito, li ontem com estupefacção, na publicação intitulada “Sous le Drapeau du Socialisme” (Julho-Agosto), cujo principal responsável é Michel Raptis conhecido por Pablo, residente em Argel, o seguinte extracto da intervenção da delegação do MPLA junto do “Comité dos 9” a 3 de Junho de 1964: “Cinco membros dirigentes da FNLA, entre os quais dois “Ministros”, enviaram-nos emissários, nas últimas semanas, com vista a uma adesão ao MPLA. Trata-se dos Srs. Jonas Savimbi, Dr. José Liauca, Jorge Valentim (antigo representante do “Grae” no Katanga), Alexandre Taty (ministro da Defesa) e Florentino Duarte (representante da FNLA no Cairo).”
Acrescento, por conseguinte, à minha carta de dia 11, as seguintes precisões: Nunca pedi a minha adesão ao MPLA, nem sequer entrei em negociações com o MPLA. A minha intransigência em relação a certas posições deste partido é por todos conhecida. Na conferência de Lagos (de 24 a 29 de Fevereiro de 1964), o Presidente do MPLA, Agostinho Neto, criticou aliás veementemente o conteúdo da minha conferência de imprensa de 22 de Fevereiro no Cairo, à qual tinha dado a maior publicidade nas ondas radiofónicas do Cairo, de Argel, de Accra, de Pequim, de Moscovo e sobretudo de Brazzaville onde o MPLA tem a sua implantação. Numa recepção da RDA no Cairo, onde participaram mais de 150 convidados, tive a ocasião de encontrar António Baia, representante do MPLA no seio do comité Afro-Asiático. Trocámos palavras sobre generalidades políticas, isso na presença de Carlos Silakanku, meu secretário, como o testemunham as fotos tiradas durante a recepção. Isso demonstra suficientemente o absurdo dessas acusações de alguns inimigos pessoais preocupados em se protegerem a si próprios tal como o incendiário grita “há fogo!”, segundo as quais teria sido comprado pelo Agostinho Neto para deixar o Cairo. Todos os meus amigos podem testemunhar a minha pobreza e certos colaboradores razões políticas para a minha partida do Cairo, razões de que me vejo obrigado a informar os membros do meu partido, a FNLA. Acrescentarei que não vejo nenhum outro responsável possível que não tu para as elucubrações do comunicado do MPLA acima citado. Porquê? Tal como testemunha a tua carta de 11 de Maio de 1964 (fotocópia junto) carta chegada depois da minha partida do Cairo e que me fizeram chegar a Lausanne, anunciavas-me a tua intenção de te unires a A. Neto.
Apesar de me ter definitivamente desvinculado da tua “linha política” a 20 de Abril, não hesitaste, passando-te por líder do que chamavas o “grupo progressista” da FNLA, em fazer um grosseiro bluf quanto à extensão dos teus apoios, dando de antemão o nome de pessoas nunca consultadas e que julgavas poder arrastar contigo ao trocar a FNLA pelo MPLA. A não ser que o MPLA tenha forçado a dose da tua aproximação. Peço, por conseguinte a esta organização o favor de publicar os documentos sobre os quais se baseiam essas afirmações.

Lausanne, 11 de Julho de 1964
Jonas,
Conheces bem as razões que me levaram a deixar o Cairo, quando me foi revelado por ti próprio o carácter aventureiro, separatista e incoerente da tua política, do qual até então não me tinhas revelado os limites e os objectivos reais. Política na qual tinhas conseguido engajar-me acusando o Presidente Holden Roberto, então ausente, dos seguintes factos, imediatamente a seguir à minha chegada a Léopoldville a 29 de Novembro de 1963.
a) que o Presidente, em colaboração com Rosário Neto, Ministro da Informação, Pio Amaral Gourgel, secretário de Estado para o armamento e Emmanuel Peterson, secretário de Estado do interior, tinha mandado massacrar milhares de “Angolanos do Sul” e dois comandos do MPLA (um dos quais era mestiço).
b) que o Presidente era tribalista porque só tinha enviado jovens [de São] Salvador para a Argélia para receberem treino militar.
c) que o Presidente se recusou sempre a incluir os soldados do PDA no ELNA.
d) que o Presidente é anti-mestiço na essência, e por isso falaste-me do seu discurso de 1961 na ONU.
e) que o Presidente guarda os fundos para ele em bancos estrangeiros em vez de os pôr à disposição da Revolução.
f) que não é partidário da extensão da luta armada em toda Angola nem do alargamento das relações diplomáticas.
As tuas afirmações tinham-me consternado, como bem o esperavas. Não tinha razões para as pôr em dúvida porque vindas de ti, Ministro dos Negócios estrangeiros. Aceitei que era preciso, neste caso, reerguer a FNLA a partir de dentro formando um Comité de acção revolucionário no seio da Frente, a fim de a trazer de novo para a “via justa”, evitar para sempre o restabelecimento de tais factos e fazer progredir principalmente a luta armada agindo no seio da frente – por persuasão ou pressão política se necessário – para chegar à abertura de um segundo teatro de operações militares importante, no centro e no sul do país e obter a realização rápida de um congresso nacional.
Foi por isso que fui ter contigo a Moscovo, Praga e Berlim-Este, respondendo assim aos convites dessas capitais, preocupadas em melhor conhecer as tendências no seio da FNLA, tendências de que já tinhas falado a um representante de uma democracia popular.
Mas no regresso dessa viagem, a 19 de Abril de 1964, fiquei surpreendido por tu me proibires de ir a Djakarta e ser recebido pelo Presidente Sukarno, quando um bilhete já tinha sido posto à minha disposição pela Embaixada da Indonésia no Cairo. Isto pareceu-
-me estar em contradição com essa política de alargamento militar e diplomático da Revolução angolana à qual estava e continuo a estar inteiramente dedicado. Fiquei ainda mais surpreso quando me explicaste, a propósito disso, que já não se devia procurar obter novos reconhecimentos para o GRAE enquanto fosse presidido por Holden Roberto.
Já tinha ficado chocado por teres recusado dar seguimento a uma oferta de cinco bolsas para estudantes angolanos em diferentes escolas de agricultura da RAU. Oferta tornada oficial e da qual tinha precisado as modalidades ao Presidente Roberto numa carta datada de 10 de Fevereiro, dizendo-lhe que se pusesse em contacto com o serviço técnico do teu ministério. Tinha ficado particularmente chocado pelo facto de a tua recusa ter sido motivada pela afirmação que essas bolsas iriam exclusivamente para estudantes “do Norte” e que por isso não estavas interessado nelas.
Mas fiquei consternado quando a 20 de Abril, decidiste deixar precipitadamente o Cairo para Lausanne quando soubeste da admissão, no seio da FNLA, de Viriato da Cruz em quem vias um rival directo. Enquanto que, se tivesses esperado mais dois dias, até ao final do grande Bairam, poderias ter, como previsto, inspeccionado as armas e o equipamento militar posto à disposição do GRAE pela RAU. Inspecção que era a condição necessária para o envio dessas armas porque tu deverias dar o teu acordo na sequência desse exame.
De facto, embora eu estivesse naturalmente de acordo em participar na organização de uma tendência “revolucionária” no seio da FNLA, já que, na tua opinião, o ímpeto desta estava destruído pelas actuações do presidente, não podia, no entanto, subscrever a tua forma de proceder quando compreendi que não querias reformar a Frente mas enfraquecê-la a fim de minar a posição do Presidente Roberto entre os combatentes e os quadros da Frente. Pois se tinha ficado convencido da necessidade de estender a guerra e de fazer pressão sobre o Presidente para o obrigar a mudar a sua linha que tu dizias estar desvirtuada, não era questão de enfraquecer materialmente a Frente mas sim de a reforçar: sendo um armamento melhor e em maior quantidade uma das condições para a extensão da guerra, no cadinho da qual se forjará a unidade total do povo angolano. É essa política de reforço da Frente que defendi contigo no plano diplomático em Dar-es-Salam e em Lagos onde foram obtidos novos reconhecimentos para o GRAE. Compreendi definitivamente que mais do que fazer alastrar a guerra desejavas tornar-te importante em Angola, mesmo à custa da destruição da FNLA, quando a 20 de Abril, na noite da véspera da tua partida para Lausanne, apresentaste-me um projecto de estatutos de um novo “Partido de acção revolucionária angolano” (PARA). Não fiz então nenhum comentário mas pedi-te uma bolsa de estudos, fazendo-te entender por essa atitude, que não devias contar mais comigo. Desiludido e preocupado com a minha reacção, fizeste um esforço para me “adoçares a boca”, repetindo-me várias vezes “terás a tua bolsa”... até a manhã seguinte quando te acompanhei para a pista do avião.
Que significaria exactamente a formação do PARA? Na minha opinião, seria uma simples fantasia burocrática já que ela não corresponderia a uma preparação psicológica e a uma necessidade das massas. Aliás se tinhas começado a redigir os estatutos, não tinhas no entanto nenhum programa original, nem sequer um simples programa. Outra coisa, os apoios logísticos nas fronteiras ser-te-iam recusados em Léopoldville e em Lusaka; e Brazzaville está, no mínimo, mal colocada, a não ser que tenhas tido a intenção de libertar o enclave de Cabinda (menos de 1% do território angolano). Mas também até teriam sido necessários combatentes.
No plano internacional, tendo a divisão FNLA e MPLA feito mal suficiente, terias apenas recreado uma confusão parecida e corrido o risco de criar desinteresse dos países africanos e anti-colonialistas em relação à Revolução angolana, por causa desta nova e lamentável divisão diante de todas as forças fascistas e racistas unidas ao lado de Salazar. Não é a tua intenção de te apoiares, entre outros, no American Comittee on Africa que teria melhorado a situação.
Pouco orgulhoso e furioso com o papel que desempenhei nas primeiras etapas do teu plano que terminou com improvisações oportunistas, resolvi os meus assuntos e deixei o Cairo sem expor os meus verdadeiros motivos, preferindo mais ficar isolado politicamente do que continuar a apoiar-te numa via que, inicialmente, podia parecer abstractamente sedutora (se fosse verdade que o Presidente Roberto traía a Revolução, como tu afirmavas) mas que passou da organização de uma tendência [Em nota: Tendência que era uma evidência para todos os leitores atentos de imprensa oficial da FNLA.] para uma conspiração, de conspiração para oportunismo, de oportunismo para incoerência e de incoerência para contra-revolução objectiva.
Porquê essa decomposição acelerada? Porque tudo estava viciado na base, porque uniste as pessoas mentindo-lhes, abusando assim da confiança que tinham na tua elevada função no seio do governo.
2) Em vez de pôr as tuas teorias à prova através do julgamento das massas, preferiste lançar-te em intrigas burocráticas no aparelho da FNLA.
3) A plataforma que desenvolveste não era, na realidade, mais do que uma máquina de guerra para servir a tua ambição pessoal. Foi então que te deixei. A sequência dos acontecimentos deu-me politicamente razão no que te diz respeito, devo dizê-lo sem alegria no coração porque tive muita amizade por ti e infelizmente uma confiança política excessiva em ti.
Calei também os verdadeiros motivos da minha saída do Cairo porque não sou daqueles para quem o oportunismo se tornou peça chave do jogo político.
Para completar, acrescentarei ainda que, não satisfeito em me ter caluniado em todo o lado e procurado me fechar todas as saídas para enfraquecer a possibilidade de um eventual testemunho incómodo, também me levantaste obstáculos na World University Service (WUS) para que eu não conseguisse obter uma bolsa e que também fosse condenado a arrastar um exílio miserável, sem possibilidade de adquirir uma formação profissional superior.
Florentino Duarte [segue assinatura]
P.S. 15 de Julho
Obrigado a defender publicamente a minha integridade política, publicamente posta em causa, expresso o desejo que seja útil para a reflexão este testemunho auto-
-crítico dos estragos que o culto da personalidade produziu entre alguns de nós cuja vigilância revolucionária foi descurada.

Fotocópia da Carta de Florentino Duarte (Lausanne) a Jonas Savimbi

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