Discurso de Agostinho Neto na Comissão Tripartida da OUA no Cairo

Cota
0087.000.008
Tipologia
Discurso
Impressão
Dactilografado
Suporte
Papel Comum
Autor
Agostinho Neto, Presidente do MPLA
Data
Idioma
Conservação
Bom
Imagens
7
10.10.66 - Discurso na Comissão Tripartida da OUA, no Cairo
*[Manuscrito por Ruth Lara: (traduzido do francês)]

Senhor Presidente,
Dignos delegados,
O Movimento Popular de Libertação de Angola - MPLA - aproveita uma vez mais a ocasião desta reunião da Comissão Tripartida para saudar os dignos membros e apresentar-lhes os maiores encorajamentos para o sucesso da missão que lhes foi confiada pelos Chefes de Estado e de Governo, a quando da Cimeira africana no Cairo, em Julho de 1964.
A 20 de Setembro, há mais de um ano, o MPLA respondeu, pela quarta vez, á convocatória desta Comissão Tripartida para uma reunião de conciliação; que teve lugar no Cairo e, pela quarta vez, a FNLA esteve ausente.
A 10 de Outubro de 1966, o MPLA responde uma vez mais a nova convocatória, permitindo-se contudo lembrar à digna Comissão Tripartida as propostas apresentadas a 20 de Setembro e contidas nos quatro pontos seguintes:
1) Cessação das lutas fratricidas praticadas pela FNLA, de todas as querelas entre a FNLA e o MPLA; libertação dos prisioneiros políticos membros do MPLA, que se encontram actualmente no campo de Kinkuzu e nas prisões d República do Congo Léopoldville, a pedido da FNLA.
2) Constituição imediata de um ‘Comité de Representantes’ do MPLA e da FNLA, para estudar a formação de um organismo político-militar comum.
3) Se necessário, abertura de um inquérito militar, a fim de se certificar quanto às realizações e actividades político-militares de cada organização.
4) Revisão do reconhecimento do ‘governo angolano no exílio’, formado prematuramente e que serve de obstáculo ao desenvolvimento da luta e a unidade das forças de combatentes.
Hoje, apesar da evolução do nosso problema, apenas das transformações que se produziram no plano nacional angolano, estas propostas mantêm-se ainda mais ou menos válidas.
A evolução do problema da unidade
No decurso da Conferência dos chefes de Estado e de Governo africanos, em Julho de 1964, foi decidido que deveria ser feita uma intervenção seria quanto à questão angolana, a fim de se ver como realizar a unidade entre o MPLA e o dito «grae», se bem que este já se encontrasse em decadência.
Com este efeito, e em virtude de uma decisão tomada pela primeira sessão desta Conferência, reunida no cairo, foi criada uma Comissão Tripartida composta pela República Árabe Unida, o Congo Brazzaville e o Ghana, tendo como mandato procurar os meios para se chegar a um «entendimento, cooperação ou unidade» entre os diversos movimentos de libertação em Angola. Noutros termos, incumbe à Comissão Tripartida realizar a conciliação entre os diversos movimentos e nomeadamente entre o MPLA e o dito «grae», com vistas à constituição de uma frente unificada, política e militar.
O MPLA mostrou-se pronto a participar em todos os esforços desenvolvidos pela Comissão Tripartida, a ter em consideração todas as suas convocatórias para reuniões e a assistir a elas, se bem que a outra parte tenha estado sempre ausente.
Entre 1964 e 1966, a situação em que se encontrava o nacionalismo angolano mudou imenso. E hoje é mais evidente do que nunca que o MPLA é incontestavelmente a única força combatente em Angola. Pode-se por, com toda a justeza, a questão de saber se o dito «grae» ainda existe!
Na realidade, admitir a sua existência real é para nós simplesmente duvidoso! Qual é a composição deste dito «grae»? Qual o apoio e o prestígio de que goza no seio do povo angolano? Onde estão a actividades que desenvolve no país?
Nem na frente de Cabinda, nem na frente de Moxico - recentemente aberta - nem na outra frente norte do país se encontra alguma presença do pretenso «grae». É pura e simplesmente nula.
Assim perguntamo-nos qual o significado e qual o valor que pode ter, neste momento, o problema da unidade entre o MPLA e o dito «grae»?
O MPLA considera que se a digna Comissão Tripartida fizer um inquérito sério, poderá verificar que a existência do dito «grae» será forçosamente posta em dúvida.
A este propósito parece-nos aliás que as nossas reservas e as nossas dúvidas quanto à exist~encia real do «grae» são mais ou menos confirmadas se se tem em conta, por exemplo, o conteúdo da carta dirigida ao Comité Director da União das Populações de Angola (partido do senhor Holden Roberto), de 2 de Agosto de 1965, assinada pelo Partido Democrático de Angola (membro da FNLA) e por alguns indivíduos, ex-membros do MPLA que se outorgaram abusivamente o título de responsáveis do MPLA. A este respeito, levamos ao conhecimento da Comissão Tripartida um simples extrato:
«Pensamos, quanto a nós, que uma tal frente, que já reúne três partidos, deveria:
a) Reforçar e orientar a revolução, pondo em comum todas as nossas energias numa revolução organizada e não numa revolta anárquica.
b) Definir os fins da guerra, as suas perspectivas políticas e traçar uma política angolana que deve atingir todas as camadas angolanas, de perto ou de longe, mantendo-as unidas em torno do ideal da revolução por meios de acção e de propaganda comuns;
c) Definir as prerogativas das nossas instituições e as suas responsabilidades delimitadas, para um trabalho eficaz na ordem, pois a desordem paralisa e mata.
A vossa vontade de fazer a união parece enfraquecer perante tais objectivos, que só podem ser realizados com discussões prévias e confrontações de opiniões; vocês pensam *[manuscrito: «vós pensais (?)»] então ser preferível voltar a formula de partido onde, segundo vos parece, não haveria nenhuma divergência de pontos de vista e de opiniões, e vocês põem-nos assim perante a vossa atitude de querer acabar com uma frente que, em vez de fazer avançar a luta a frenaria ainda mais, pelas suas discussões.
Se tal é a vossa vontade definitiva, será necessário, para melhor servir os interesses da revolução, não deixar manter a ilusão da possibilidade de uma verdadeira união e pronunciar a dissolução duma frente que se torna pré-judicial, tanto para vocês como para a revolução, de tal modo que não pode ser mais aquilo que queríamos que fosse. Nós tranquilizamo-vos pois, pela nossa parte, não poderá haver a mínima resistência e vocês sabem-no com certeza. Pois nós chegamos a conclusão que vale mais deixar avançar a revolução do que rodeá-la de discussões que fazem aparecer as divergências do que rodeá-la de discussões que fazem aparecer as divergências nas opiniões...»

No mesmo sentido, permitimo-nos transcrever uma pequena parte das declarações interessantes feitas na Câmara de Deputados da República Democrática do Congo, a 26 de setembro, pelo Digno Deputado nacional, Sr. Laurent Nsingui:
«Infelizmente para os nossos irmãos angolanos, que gozam da nossa bondade, da nossa hospitalidade, um dito ‘governo angolano no exílio’, em Kinshasa, viola as nossas leis e costumes cometendo, no nosso próprio solo congolês soberano e independente, actos de um governo de um país dictatorial. Com efeito, certos angolanos e não os menos responsáveis, pertencendo a partidos políticos não filiados ao pretenso governo infelizes opositores são presos e lançados para prisões privadas e executados pelos próprios angolanos...»

O que nós pensávamos que existia era simplesmente um indivíduo que exercia a sua violência brutal sobre os refugiados angolanos, servindo-se abusivamente do apoio político e material que lhe era concedido pelo governo do Congo Kinshasa.
De resto, o dito ‘governo angolano’ foi uma criação absolutamente prematura. Consideramos que um governo, nas condições concretas do nosso país não poderá nem deverá ser criado sem se ter em conta a participação e o acordo das massas populares combatentes do país e também uma infraestrutura cobrindo largas zonas realmente libertadas.

A posição do MPLA no que respeita o problema da unidade
O MPLA sempre apoiou a tese, aliás inscrita no seu programa de acção, que a unidade do povo angolano é primordial para a sua libertação da dominação colonial. Contudo o MPLA sempre encontrou uma oposição sistemática a todos os seus esforços para a realização desta unidade.
Consideramos que uma unidade válida será a que reúne os combatentes nas mesmas fileiras, a que visa os mesmos objectivos e que emana do nosso país.
Mesmo tendo em conta todas as vicissitudes que podem surgir na história da unidade, o MPLA declara-se ainda disposto a fazer tudo para encontrar as bases adequadas para uma unidade, segundo princípios categoricamente revolucionários.

Propostas
Assim, para conseguir uma base de unidade com a FNLA, o MPLA propõe:
a) a revisão do reconhecimento do dito «grae», afim de facilitar a unidade;
b) A libertação imediata de todos os militantes do MPLA presos no território do Congo-kinshasa, por ordem do dito «grae»; cessação das perseguições, prisões e eliminações físicas dos angolanos membros do MPLA, na base de Kinkuzu.
c) Cessação de toda a propaganda contra o MPLA por parte do dito «grae» no seio da população refugiada na República Democrática do Congo;
d) Um inquérito sobre as actividades do MPLA e do dito «grae», a fim de determinar se o dito «grae»existe realmente;
e) A constituição de uma Comissão Mixta de Representantes do MPLA e do dito «grae» a fim de encontrar a base para a formação de um organismo político-militar comum.

A evolução do problema angolano e o desenvolvimento da luta pela independência de Angola sob a direcção do MPLA

Se, em 1965, o MPLA pode desenvolver as suas actividades no distrito de Cabinda, o ano de 1966 caracterizou-se principalmente pela preparação e abertura de uma nova frente de combate no Sul do País, perturbando assim o sistema defensivo português e abrindo novas perspectivas para a luta do nosso povo, como se pode constatar pelas declarações seguintes:

«Lisboa, 13 de Setembro de 1966 (AFP)
O Ministro da Defesa, general Gomes de Araújo, confirmou hoje a existência de uma nova frente em Angola, na fronteira zambiana.
O ministro português, que acaba de efectuar uma visita de isnpecção a Moçambique e Angola, declarou ao «Diário de Lisboa», em reposta a um apergunta, que «infiltrações de elementos do MPLA pela fronteira de Angola com a Zâmbia nos obrigaram a intensificar a vigilância ao longo da linha dividindo os dois territórios». A pergunta sobre se se tratava de uma nova fase da luta, o general Gomes de Araújo respondeu: «Não. O MPLA não tendo conseguido em Cabinda, tenta agora desencadear a agressão nesta zona sudeste de Angola, infiltrando aí elementos que partem da Zâmbia. O facto de existir uma nova frente (concluiu o Ministro da Defesa) não significa que a situação tenha piorado. É somente uma situação diferente daquela que existia entes.»

Ainda sobre o mesmo assunto, o jornal «Le Monde» de 15 de Setembro de 1966 escrevia:
«Lisboa, 14 de setembro (AP)
Voltando de uma viagem de inspecção a Angola e Moçambique, o general Gomes de Araújo, Ministro da Defesa de Portugal, anunciou terça-feira que os rebeldes abriram uma nova frente na fronteira oriental de Angola, perto da Zâmbia, sob a direcção do MPLA. É a primeira vez que se divulgam oficialmente combates perto da Zâmbia. Os combates, até aqui, situavam-se a Norte. O ministro declarou que os rebeldes utilizam a Zâmbia como base de operações.»
A actividade do MPLA no Sul do País foi precedida por acções preparatórias de que são testemunhas os governos da Zâmbia e da Tanzânia e o Comité de Libertação de África, pois nos concederam uma ajuda inestimável para a formação dos nossos quadros militantes e para a mobilização dos recursos materiais que nos permitiram realizar alguns dos nossos objectivos.
E Maio de 1966 a nova frente foi aberta. Como consequência deste facto, a soldatesca portuguesa até bombardeou aldeias de refugiados angolanos situados na Zâmbia, perto da fronteira.
Apesar dos obstáculos enormes que se levantam para a circulação de material e de equipamento militar, o que torna difícil um desenvolvimento mais rápido e mais vasto da nossa luta, esta nova frente desenvolve-se duma maneira satisfatória. As zonas de actividade estendem-se cada vez mais, ao mesmo tempo que se mobilizam centenas e centenas de jovens, para os enquadrar nos destacamentos de combate do MPLA.
A Leste de Angola, na fronteira com a Zâmbia e no interior do distrito do Moxico e Sakayeka, apesar do pouco tempo de actividades - pois a nova frente só foi aberta há escassos meses apenas - já se podem contar algumas dezenas de Comités de Acção criados.
O engajamento do MPLA na luta de libertação nacional, com todos os quadros e meios materiais de que dispões, e isto apesar das restrições que lhe são impostas pelas circunstâncias difíceis para o nacionalismo angolano, mostra bem a sua determinação de lutar sem desfalecimento contra o colonialismo português. Hoje, o MPLA, pelo trabalho realizado, a extensão e a profundidade do seu campo de acção, tornou-se a única força organizada que conduz uma luta armada no interior do país.

Os focos tradicionais de resistência, situados nos Dembos, Nambuangongo e nos distritos de Luanda e Cuanza-Norte, onde militantes do MPLA se mantêm sempre firmes, apesar das dificuldades de abastecimento devidas à falta de facilidades de trânsito através do Congo-Kinshasa, conhecem uma nova recrudescência na sua actividade e reforçam-se cada vez mais.
No distrito de cabinda, onde a luta se intensifica e onde as zonas libertadas se restruturam e se consolidam, a posição do MPLA é cada vez mais forte. Nas zonas libertadas deste distrito, a actividade do MPLA caracteriza-se pela instalação de dispensários médicos, de escolas primárias para combater o analfabetismo, para a constituição de milícias populares; a instalação de um Centro de Instrução Revolucionária, de diversos Comités de Acção e a direcção da acção militar repousa já sobre numerosos quadros bem formados. Os preparativos das acções são agora rapidamente executados a fim de permitir aos nossos destacamentos um avanço cada vez maior numa zona fortemente preenchida por forças militares portuguesas.

Desde Janeiro 1966, pode-se traduzir a actividade militar do MPLA pelo balanço seguinte:
formação de mais de 470 combatentes
destruição de mais de 35 pontes
mais de 55 veículos destruídos ou danificados
destrução de dois campos militares portugueses, com morteiros
queda de um avião devido ao fogo da nossa DCA
destruição de diversas estradas e de uma via ferrea
mais de 753 soldados colonialistas portugueses mortos e algumas centenas postos fora de combate
grande quantidade de material de guerra e de equipamento recuperados
paralização de toda a actividade de exploração agrícola e comercial dos portugueses em Cabinda, etc.

Assim, estamos certos, Dignos Membros da Comissão Tripartida, que poderemos prometer que em 1967, não somente estas três frentes estarão muito mais desenvolvidas como também serão estabelecidos novos focos armados no nosso país, para assenar duros golpes ao inimigo. E tudo isto com a intenção de atingir a libertação do nosso povo e de libertar também a África inteira.

O apoio concedido ao MPLA nos planos nacional e internacional

No interior de Angola não há nenhum angolano em armas que não seja membro do MPLA. De Norte a Sul do País só o MPLA exerce uma série pressão sobre as forças colonialistas portuguesas, não existe em todo o nosso território qualquer confusão, qualquer dúvida a este respeito.

As massas populares aderem continuamente ao MPLA e todas as camadas sociais e todas as tendências religiosas são unânimes em reconhecer a justeza da orientação do MPLA.

As repressões exercidas pelas forças colonialistas, pela PIDE e pelos colonos no interior do nosso país, e também as violências cometidas no Congo-Kinshasa contra refugiados ou militantes angolanos por pretensos ‘nacionalistas’ angolanos, provam a extensão do estado de insurreição do povo angolano e a sua adesão as palavras de ordem do MPLA.

No plano da luta nas colónias portuguesas, a estreita cooperação entre o MPLA e as organizações revolucionárias enquadradas no seio da Conferência das Organizações Nacionalistas das Colónias Portuguesas (CONCP), assume uma importância muito grande, na medida em que ela implica a união das forças dos nossos povos na luta contra o colonialismo português, reforçando ao mesmo tempo a unidade no plano interno.

No contexto internacional, o apoio dado ao MPLA é sem equívocos, quer por parte da maioria dos países africanos, quer dos países socialistas ou das organizações democráticas e progressistas do mundo inteiro, o que se manifesta claramente nos contactos bilaterais e nas conferências internacionais. Entre elas, podemos citar como exemplo mais marcantes, o apoio e a solidariedade ao MPLA das conferências da Organização de Solidariedade dos Povos Afro-Asiáticos (OSPAA) e da Tricontinental, que reconhecem o MPLA como única força combatente em Angola.

Dignos Membros da Comissão Tripartida, estamos-vos muito reconhecidos.

O Comité Director do MPLA
Cairo, aos 10 de Outubro de 1966

*[Manuscrito por Ruth Lara: «(In ‘Colonies portuguaises: La victorie ou la mort’. Edição Tricontinental - traduzido do francês)]
Tradução da versão francesa do discurso de Agostinho Neto na Comissão Tripartida da OUA no Cairo. Foi publicado em «Colonies portugaises: La Victoire oula Mort» (Edição Tricontinental)
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