Carta de Benedito a partir da Base de Kinkuzu

Cota
0097.000.041
Tipologia
Correspondência
Impressão
Dactilografado
Suporte
Papel Comum
Remetente
João Gonçalves Benedito
Destinatário
Comité Director do MPLA
Data
Idioma
Conservação
Mau
Imagens
2

Base Militar Angolana, no Kinkuzu

Para entregar à N. Organização

31-10-67

À minha organização, aos Meus camaradas e aqueles que ainda têm na memória os nomes dos mártires que sofrem por bem da pátria, as minhas saudações revolucionárias.

Não sei o que hei de escrever e que não o sinta. Começo a dizer que fui preso no dia 1º de Novembro de 1966 pelo Peterson e cinco militares congoleses; levado no seio do grae, fui atirado num pequeno quarto com 80 cm, molhado e cheio de fumo. Tiraram-me tudo que tive bateram-me, fizeram-me beber urina, fumaram a célula com diamba e gindungo até a chegada do H. que tinha sido chamado para me ver. Todo grae, estava de festa por me haver. Eu teria desaparecido, se não encontro na mesma prisão, o camarada Carlos Gouveia. Não me interrogaram e não me alimentaram. Dia 2 às 19 horas deram-me as calças e o casaco, e mãos ligadas atiraram-me no carro dos congoleses acompanhados por soldados congoleses, tratado pelos upistas, como rebelde de Kissangani. O chefe do bando que me escoltava era o Issenguele Norberto chefe de Estado maior adjunto da Base. Chegamos a Tysville a meia noite, onde sofri, o que nunca tinha sofrido na minha vida. Na casa da upa encontrei militares da base, amarraram-me mãos atrás, até os cotovelos encontraram-me, pernas atadas, fizeram de mim um embrulho; neste estado, deram-me pontapés, rebentaram-me os lábios, meteram-me dedos nos olhos cuspiram e urinaram sobre mim, enquanto dum lado morria de fome. Dia 3 partimos de Tysville em direcção à base, onde chegamos às 14 horas, na 2 barragem = polícia, batido nas nádegas e nos pés, não parecia estar nas mãos dos angolanos. Todos falavam Kikongo e lingala, e não estão esclarecidos, porque uns diziam que eu era do grupo do Kassinda, outros que era secretário do Taty Alexandre crianças dos refugiados da upa, metiam-me dedos nos olhos, de maneiras que fiquei cego.
Aos empurros fui conduzido à prisão, já desamarrado; pelo caminho encontrei o Julião, Isaías e Eugénio que são os maiorais deste centro olhando-me com escarno. Na prisão semi-subterrânea, fui recebido a bofetadas pelos verdugos. Eu sangrava como um porco morto, enquanto os meus camaradas do infortúnio me olhares de pouco?
Do Kassinda ao Silvestre todos estavam vivos. Na manhã do dia 4/11/66 apareceram na prisão para mofarem de mim, os grandes: Gourgel, Gonçalves Amargoso, Eugénio e outros, trazendo com eles o desaparecido Adriano para mostrarem que ninguém tinha desaparecido. Eu nu, ferido, cansado e com fome, estava cercado por eles. O Gourgel tomando a palavra disse: Benedito, aqui estás nas nossas mãos para nos conheceres. Dizias que quando enviaste o teu grupo em Angola, nem deus sabia, e dizias isto ao velho Adão o pastor. Agora digo-te que o Azevedo e Domingos da Silva, Ramos e companhia vão parar aqui sem falta. Aqui está o Adriano e seus companheiros, não morreram porque estavam a tua espera.
Meia hora depois de me deixarem, dois militares vinham me buscar armados, para ser apresentado ao povo. Levaram-me no pátio da bandeira, onde estavam presentes mais de 400 pessoas além dos alunos da escola e senhoras. Todo o corpo de Estado maior estava completo. Tomou a palavra o Sr. Gourgel que dizia: Povo, aqui tendes o afamado Benedito, chefe do Estado maior do MPLA; não, corrigiu o Julião que estava à sua esquerda, ele não é chefe de Estado maior mas sim, secretário de Estado; continuando, Gourgel informou, Benedito, o homem que enviou o seu grupo de soldados para ir implantar o comunismo em Angola; Benedito, que enviara por três vezes Morais para me envenenar, Benedito, que me prendeu em Dolisie, e me teria morto, se não fosse a gendarmaria congolesa. Está aqui o Benedito à nossa disposição. Será Julgado pelo povo, e a sua execução, a faca, não para gastar balas! Muito mais coisas disse e no fim da apresentação, Eugénio=chefe do Estado maior fez fogo no ar, sinal de regozijo, por terem prendido o Fantasma.
Desde aquele dia começou o meu calvário junto com aqueles que encontrei. Trabalho forçado, surra, funge com 3 cm de peixe, para 24 horas dormir no cimento húmido, sem esteiras. Não morri, porque oito dias depois que cá cheguei, veio a comissão parlamentar congolesa e perguntar pelos prisioneiros, em especial por mim. Tentaram esconder-me mas era tarde, senão teria desaparecido no dia 28/11/66, como Adriano Carlos e seus companheiros que foram mortos neste dia, no Langano 5, à catana. Eu era apresentado a todos que viessem nesta base como um animal feroz. Vi grupos armados e comandados pelo Gonçalves Amargoso, para ir atacar os valentes da caravana Sem-Fuego. Vou arrancar os olhos dos teus soldados, disse-me o Amargoso. Todas as declarações feitas pelo Lanvu, são verdadeiras. Como o sofrimento era demais, organizamos a fuga, que foi trágica para uns e feliz para outros. Quando, vi chegar os camaradas Sangue e o Gackson, senti-me perdido, decidi fugir com os outros. Nesta fuga morreram Domingos de Souza Vigas? e Tomaz alvejados a tiro. Sobre mim atiraram mas a bala não me tocou.
Estava eu mais um mestiço do Sul. Fomos amarrados e levados à base onde fomos batidos até sangrar, pelo Julião e Isaías. Estes me teriam morto, se não fosse a intervenção do Gourgel. O meu sofrimento aumentou, quando dias depois vinham como prisioneiras as 5 heroínas e 5 heróis pequenos, detidos no interior do país, que até hoje me faz confusão, porque nunca tive ocasião de conversar com elas. De Abril em diante, comecei a ver chegar de Angola homens vestidos com a nossa farda de camuflagem e calças de Kaki verde, calçado e óculos, cinturões e emblemas etc, recebidos no interior de Angola. Depois armas descobertas no Bas-Congo. Ultimamente, 105 camaradas presos em Tysville, isto tudo me prejudicou. Estou magro, velho e cego. Na 3ª prisão, somos 35 homens e todos somos 58. Estes todos olham e esperam que o MPLA os libertam. No dia 15/9/67, morreu vítima dos maus tratos, o camarada Angelino Silvestre=Morreu na cadeia. Não temos medicamentos. Eu sou tido até hoje como o prisioneiro mais perigoso apresentado como o preso Nº1. Hoje fazemos 45 dias, que estamos fechados comemos e cagamos dentro de casa. O velho Folhas Caídas=Paulo Neto não anda sem bengala. Eu estou cego, Nelumba e outros parecem homens vindos das estranhas terras: O papel é pouco e o lugar é perigoso.
Aqui fico os 35 prisioneiros imploram rezam todos os dias para que o MPLA os salvem! Salvem-nos, Salvem-nos. Saudações as valentes da OMA, MPLA, JMPLA.
De um dia para o outro, posso desaparecer, mas nunca hei-de deixar de ser o homem do grande Movimento! Em nome das 35

Benedito

Vitória ou Morte - Coragem e Esperança.

Cópia de uma carta de Gonçalves Benedito «à minha organização, aos Meus camaradas e àqueles que ainda têm na memória os nomes dos mártires que sofrem por bem da pátria, as minhas saudações revolucionárias…» a partir da Base de Kinkuzu.

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