«Angolan Nationalism» - Documento do MPLA à Conferência dos Não-alinhados

Cota
0025.000.004
Tipologia
Memorando
Impressão
Policopiado
Suporte
Papel comum
Autor
MPLA - Movimento Popular de Libertação de Angola
Data
Set 1961
Idioma
Conservação
Bom
Imagens
12
Observações

Foi publicado no 2º volume de «Um amplo movimento…»

O NACIONALISMO ANGOLANO

[Sem data]
Os povos do “Terceiro Mundo” (países não-alinhados) estão hoje a fazer História. Eles criaram um novo equilíbrio nas relações internacionais e as suas acções ecoam a nível mundial. Os acontecimentos neste Terceiro Mundo interessam e dizem respeito a todos os povos do planeta.
Angola, que era ontem um país que poucos saberiam localizar num mapa e ­desconhecido da opinião pública mundial, entrou definitivamente no grande palco da História com o início da sua luta armada pela independência.
Não é nossa intenção analisar os programas dos partidos políticos nem as tácticas de curto prazo que acompanham o combate armado. Antes pretendemos situar este vasto movimento de libertação nacional no seu contexto geral, tentar indicar os marcos históricos e os acontecimentos específicos que fizeram eclodir a luta que actualmente tem lugar em Angola.
Devido ao contexto colonial, a luta de libertação nacional em África tem caracterís­ticas especiais. Portanto, não se pode analisar validamente nenhuma das lutas pela independência africana e pela dignidade humana sem ter em consideração o sistema específico do respectivo país colonizador.
Em relação à evolução do movimento nacionalista numa colónia portuguesa, é importante destacar dois factores essenciais que retardaram seriamente o seu progresso. Em primeiro lugar, o isolamento imposto pelo sistema colonial, assim como o carácter da constituição em vigor no próprio Portugal nos últimos 35 anos, colocaram Angola na zona do mais profundo silêncio em África. Em segundo lugar, devido ao facto de a administração colonial ter tornado impossível às massas qualquer oposição ­política aberta e legal, a clandestinidade tornou-se um factor permanente da organização política.
Em termos gerais, pode dizer-se que a precedência dos acontecimentos que tiveram lugar noutras partes do continente africano sob domínio colonial francês, belga e ­britânico, impediram sucessivamente a atenção mundial de se voltar para as ­colónias portuguesas. Ao mesmo tempo, o regime de Salazar aperfeiçoou uma máquina de ­propaganda destinada a tornar plausível a tese da “integração territorial” e da “assimila­ção espiritual”.
As colónias portuguesas foram, até recentemente, as únicas regiões da África onde a moderna luta política nunca tomou formas legais. Desde os anos 30, por exemplo, não houve em Angola qualquer contestação pública popular com um partido ou uma liderança política. De facto, o aparecimento de uma liderança organizada (um chefe) na revolta é um fenómeno que emerge nas recentes fases do nacionalismo angolano.

Evidentemente, houve alguns discursos violentos durante campanhas eleitorais para a presidência da República Portuguesa, feitos por tribunos angolanos que quiseram ­aproveitar essa oportunidade para denunciar publicamente as miseráveis condições de vida do povo. Foi o caso da campanha eleitoral de 1948 que, porém, foi um mero episódio e não uma manifestação de actividade política permanente e estável, baseada num partido político, desafiando a administração colonial. Por esta razão as autoridades portuguesas têm sido as únicas a falar ao mundo sobre as suas políticas coloniais.
Paralelamente, Angolanos considerados como “assimilados” e residentes nos meios urbanos organizavam um outro tipo de luta. Esses núcleos de assimilados, na sua maioria funcionários, empregados de comércio, pequenos proprietários de terras, artesãos e trabalhadores, usaram a imprensa e as associações regionais para denunciar o roubo e pilhagem do sistema colonial. A luta era particularmente difícil nessa época. Vários publicistas africanos acabaram por ser condenados à perda dos direitos políticos e civis, quando não à deportação.
A chegada de Salazar ao poder iria infligir um golpe mortal a toda a agitação ­política em Angola. É preciso dizer, no entanto, que certas associações africanas foram fundadas em 1929, nomeadamente a Liga Nacional Africana (LNA) e o Grémio Africano chamado mais tarde Associação Regional dos Naturais de Angola (Anangola) cujo objectivo era a conquista de melhores condições económicas e sociais, através de pressões legais.
Com o aumento progressivo do número de colonos e o controlo crescente dos Portugueses em todos os domínios da vida angolana, a maior parte dos membros dessas associações davam-se conta da impossibilidade de travar com sucesso um combate aberto contra a administração colonial, pela via reformista. Essas associações foram palco de divisões e contradições na geração dos nossos pais, enredados numa situação histórica que exigia uma mudança radical dos métodos de luta empregues até então.
Os partidários das reformas legais, uma minoria entre os Angolanos activos, procura­ram apoio da administração colonial que, por sua vez, aproveitou esses candida­tos à traição para aprofundar a divisão entre os Angolanos. Outros, no entanto, preconi­za­ram uma actividade política consequente ligada à massa dita indígena. Propunham dois meios para o conseguir: que essas organizações admitissem como membros os Angolanos que não gozavam de direitos políticos e civis, e que elas estendessem o seu campo de acção política, social e cultural às massas populares.
Uma crise instalou-se na direcção, em particular no seio da LNA. A minoria oposta a qualquer ligação com as massas desistiu da luta. Tirando proveito da crise, as ­autoridades portuguesas souberam, pela corrupção, suborno e pressões morais, infiltrar agentes da polícia política nessas associações e conseguiram substituir as direcções eleitas por comissões administrativas nomeadas pelo Governador-Geral da Colónia. Com o passar do tempo, a velha geração perdeu a esperança no sucesso da luta contra a administração colonial portuguesa.
Uma nova etapa do movimento nacionalista angolano viria a abrir-se a partir do fim da segunda guerra mundial. Cerca de 1948, a juventude angolana em Luanda, tendo repensado as experiências políticas precedentes à luz do novo contexto ­histórico, fez uma entrada turbulenta na cena pública. Os jovens começaram por utilizar as ­associações legais para aí desenvolver actividades destinadas às massas africanas e tentar preencher o fosso entre os Angolanos ditos “civilizados” e os “indígenas”.
Uma campanha contra o analfabetismo foi organizada e foram feitos esforços para dar sentido nacionalista às obras culturais. A juventude angolana, no diapasão das novas ideias que circulavam no mundo, trazia nas suas obras literárias uma nova mensagem que cristalizava o sentimento nacional. Revistas e jornais culturais forjavam a tomada de consciência política. A administração colonial não tardou a pôr termo a essa agitação dos jovens angolanos que estavam na vanguarda da luta legal. Uma única via se oferecia então ao combate pelo despertar nacional das massas – a organização da clandestinidade política.
Os movimentos políticos angolanos vão, a partir daí, nascer e desenvolver-se num clima de terror policial. A fim de fazer avançar a ideia da necessidade urgente da criação de organizações nacionalistas clandestinas, estudos sérios foram feitos em Angola, sobre a situação internacional e sobre a natureza do fascismo. Esses estudos foram divulgados no país inteiro por um grupo de jovens urbanos.
O Partido da Luta Unida dos Africanos de Angola (PLUA) foi criado em 1953 [em breve foi criado]. E em 1956 os dirigentes do PLUA e de outras organizações lançaram um manifesto apelando à formação de um vasto agrupamento e fundaram assim o Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA). Após uma breve análise do processo de dominação [capitalista e] imperialista dos povos africanos, o Manifesto passava em revista os aspectos essenciais da dominação colonial portuguesa em Angola, nos planos político, económico, social e cultural.
“Somos humilhados como indivíduos e como povo”, observava o Manifesto, denunciando a nova orientação da política colonial portuguesa, baseada nas tentativas de genocídio do povo angolano, a submissão das massas ao trabalho forçado, a destribalização, a falta de assistência sanitária e a assustadora taxa de mortalidade infantil. Nestes últimos tempos, acrescenta o Manifesto, a opressão colonial portuguesa agrava-se pela penetração em Angola (pela mão dos colonialistas portugueses) do capital estrangeiro, dos monopólios e dos trusts internacionais [europeus e norte-americanos].
Face a uma tal situação, ele convidava o povo angolano a organizar-se e a lutar em todas as frentes e em todas as condições “para o aniquilamento do colonialismo ­português, para tornar Angola um Estado independente, para a instauração de um governo democrático [e popular], um governo de coalizão de todas as forças que tenham lutado [implacável e intransigentemente, até ao fim] contra o colonialismo português. Porém, o colonialismo português não cairá sem uma luta desesperada. Assim, existe apenas um caminho para a libertação do povo angolano: o da revolução. Mas esta luta só poderá atingir o seu objectivo através de uma frente única de todas as forças anti-coloniais [anti-imperialistas] de Angola, independentemente das opiniões políticas, ­situação social dos indivíduos, crenças religiosas ou tendências filosóficas. Apenas através da formação do mais amplo movimento popular de libertação de Angola. Esse movimento não será no entanto o resultado da pertença de todos os patriotas angolanos a uma única organização ou associação. Esse movimento será a soma das actividades das organizações angolanas.” [“Génese…” inclui mais algumas afirmações do Manifesto]. Foram estas as ideias que se difundiram entre os habitantes de todo o país. Camponeses, operários, funcionários, intelectuais e líderes religiosos aderiram ao programa do MPLA. Entre outras ­organiza­ções também criadas, estava o Movimento para a Independência Nacional de Angola (MINA), fundado em 1958, que se fundiu mais tarde com o MPLA.
Tendências nacionalistas angolanas manifestaram-se também nos meios de emigrantes no Congo, em particular o movimento messiânico de Simão Toco. Nascido em Angola em 1917, este líder religioso emigrara para o Congo-Léopoldville, onde criou e desenvolveu a organização conhecida pelo seu nome. O movimento, cujos objectivos essenciais se traduziam pela prática da desobediência civil e pacífica às leis da administração colonial, tinha muitos seguidores no interior de Angola. Expulso do Congo, Simão Toco voltou para a sua terra natal, onde as autoridades portuguesas tomaram medidas contra ele e seus adeptos, até ao ponto de os deportar para o campo de concentração da Baía dos Tigres. Actualmente está empregado como ajudante do faroleiro em Porto Alexandre.
Outros agrupamentos, baseados umas vezes em afinidades étnicas e culturais, outras vezes regionais, deram lugar no Congo (Léopoldville e Brazzaville) a associações de ajuda mútua, numa primeira fase, e depois a verdadeiros movimentos nacionalistas angolanos, seguindo a evolução dos acontecimentos políticos nessas regiões. Citemos a União das Populações do Norte de Angola [fundada em 1954] que se tornou em 1958 a União das Populações de Angola (UPA), a Aliança dos Originários do Enclave de Cabinda (AREC), hoje Movimento de Libertação do Enclave de Cabinda (MLEC) e a Aliança dos Originários do Zombo (ALIAZO).
Retomando o curso dos acontecimentos no interior, é importante assinalar factos essenciais que marcaram, desde 1956, a vida dos movimentos nacionalistas em Angola. Decididos a fazer face a uma situação política em mudança, onde se notavam sinais de agitação nacionalista, os Portugueses instalaram na colónia a sua polícia política, a Polícia Internacional e de Defesa do Estado (PIDE), no início de 1957. A perseguição aos nacionalistas angolanos tomou novo carácter e organizou-se metodicamente. O primeiro Secretário-Geral do MPLA, Viriato Cruz, teve de fugir e procurou refúgio na Europa.
O ano de 1958 foi particularmente marcado pela actividade política. Através de panfletos, programas de acção, proclamações de luta anti-colonialista e organização de escolas clandestinas, a agitação das massas angolanas não parava de crescer e de preocupar os Portugueses. A população de Luanda evocará por muito tempo aquele domingo de Páscoa de 1959 como uma data trágica nos anais do nacionalismo ­angolano. O dia 29 de Março desse ano marcou a primeira operação espectacular de terror desencadeada pela PIDE sobre as massas africanas da capital. Nacionalistas bem conhecidos e outros suspeitos de participação nos movimentos políticos foram presos, com violências perpetradas contra a população pacífica.
A 26 de Abril de 1959, no quadro da defesa das “províncias ultramarinas”, o Sub-secretário português da Aeronáutica presidiu à instalação da Força Aérea em Angola, numa cerimónia que demonstrava o poder destrutivo das suas armas. A imprensa de Luanda delirou. O “Comércio de Angola”, por exemplo, dedicando quase a edição inteira a essas manifestações, começa por chamar aos voos militares “o primeiro festival da Força Aérea Angolana”. E prossegue: “Foi com emoção e entusiasmo que uma gigantesca massa popular de mais de 100.000 pessoas assistiu à demonstração da Força Aérea”.
A exibição de pára-quedistas no aeroporto também recebeu grande ovação… Exemplos de ataques com bombas de napalm bem como tiro intensivo de metralhadoras tiveram efeitos impressionantes… O certo é que as operações tiveram um estilo bélico, com as autoridades a indicarem claramente que não hesitariam em usar aquela forma de combate para subjugar uma eventual revolta anti-colonial ou mesmo para prevenir a sua ocorrência.
Para começar, o lançamento de pára-quedistas (note-se que o primeiro pára-quedista a chegar ao solo era o capelão católico que acompanhara a Força Aérea desde Lisboa). A seguir, bombas de napalm (45 kgs) e fogo de metralhadoras. “Alerta, em atlético passo de ganso, os soldados surpreenderam a população europeia”, e a entusiástica imprensa colonial prossegue: “muitos observadores pareciam ter um único desejo: que toda esta demonstração de força não seja apenas um exercício.”
Outras manifestações do género tiveram lugar em regiões do sul de Angola: Nova Lisboa, Sá da Bandeira, Lobito, Benguela. Na Assembleia Nacional portuguesa, o deputado colonial por Moçambique, colónia da costa oriental, pediu o estabelecimento de forças militares.
O Governador-Geral, saudando os voos de guerra do “Primeiro Festival da Força Aérea” numa colónia portuguesa, declarava: “Nos nossos dias, a paz só é possível quando os Estados dispõem de forças suficientes para fazer face às ameaças dos agitadores e causadores de distúrbios, geralmente inspirados pelo Comunismo sob as formas mais veladas. Um país só pode ser defendido com uma armadura militar e cada parcela do território português deve estar provida de tropas de terra, mar e ar, sempre presentes e vigilantes, a fim de impedir a cedência à cobiça ou a falsas ideias”. E ainda: “É preciso que as tropas sejam moralmente fortes para resistir a qualquer tipo de propaganda que pretenda miná-las, pois sabe-se que o exército é o principal obstáculo à difusão da propaganda. Estamos na época dos panfletos nos quais a força militar é ­considerada um inimigo incómodo. Tal como esperávamos, o panfleto também já surgiu em Angola…”
Um novo alerta foi dado. Só na cidade de Luanda, mais de 150 pessoas foram detidas no decorrer de Julho de 1959. Em Lisboa, foi preso o intelectual e líder ­naciona­lista do MPLA Ilídio Machado, que ali se encontrava de férias. Após essas numerosas prisões, a PIDE organizou os processos de 57 pessoas (50 Angolanos e 7 Europeus [progressistas]). Este “processo dos 50” foi apresentado pela polícia política portuguesa como uma grande conspiração organizada no interior de Angola. Havia três diferentes processos: o primeiro envolvia 15 Angolanos (um deles em Ponta Negra), um Guineense, um Americano negro e um Cubano negro; o segundo dizia respeito a 7 Portugueses e o terceiro a 32 nacionalistas angolanos, 20 dos quais estavam presos em Luanda, vivendo os outros 12 no Congo, na Europa, no Brasil ou algures.
Os acusados pertenciam aos mais diversos círculos sociais: funcionários, ­empregados comerciais, enfermeiros, operários, intelectuais e estudantes. O “Processo dos 50” revelou em que medida a luta pela independência de Angola se tinha desenvolvido e demonstrou as capacidades organizativas dos diversos movimentos nacionalistas.
A leitura dos documentos do julgamento fez-nos compreender que o movimento nacionalista angolano tinha chegado a um ponto de viragem que o levaria, por um lado, à organização da clandestinidade e, por outro lado, à constituição duma frente unida de libertação. Se a PIDE não tivesse decidido lançar a sua rede naquela altura, o curso político dos acontecimentos em Angola apresentaria hoje um aspecto mais positivo, uma vez que os nacionalistas teriam tentado realizar a unidade e associação de todas as forças nacionalistas.
Os trâmites legais começaram nos finais de 1959, mas a data do julgamento, fixada inicialmente para 7 de Março de 1960, foi adiada várias vezes. Em Agosto de 1960, a fim de lançar a confusão sobre o que realmente estava em causa na luta nacionalista angolana, a PIDE exigiu o julgamento dos 7 Portugueses acusados de distribuírem panfletos clandestinos apelando à independência da colónia. Eles foram depois ­sentenciados a prisões de 3 meses a 3 anos e à perda dos seus direitos políticos por 15 anos. O Supremo Tribunal de Justiça de Lisboa, após recurso, elevou as sentenças para um mínimo de 5 anos.
A 5 de Dezembro do mesmo ano, o tribunal militar de Luanda realizou um pseudo julgamento de 20 angolanos nacionalistas, membros do MPLA e de outros grupos ­políticos. Durante o julgamento, cometeram-se irregularidades de todo o tipo: isolamento dos advogados de defesa impedidos de consultar os processos, de visitar os seus clientes e até de ouvirem as testemunhas de defesa. Conscientes das suas responsabilidades de combatentes nacionalistas, os acusados recusaram reconhecer a um tribunal estrangeiro o direito de os julgar, atitude que deu à maioria dos advogados portugueses motivo para abandonar a defesa. Apenas dois advogados, Almeida Valadas e Maria do Carmo Medina corajosamente continuaram a defesa, acto que lhes valeu imediatas represálias da PIDE.
A 21 de Dezembro os 20 patriotas angolanos foram condenados a prisões de 3 a 10 anos, com perda de direitos políticos por 15 anos. O “Processo dos 50” foi o primeiro reconhecimento oficial da existência do movimento nacionalista angolano com ramifica­ções por todo o país, e o seguinte testemunho de uma jovem angolana descreve bem o desenvolvimento da consciência nacional angolana entre 1956 e 1959.
“A nossa vida pública e privada em Luanda tinha-se tornado cada vez mais ­insuportável: éramos vigiados na igreja, não estávamos seguros em casa e éramos ridiculari­zados na escola. Por todo o lado a nossa sobrevivência dependia da boa vontade dos Portugueses e os abusos eram o “pão nosso de cada dia”. Eu era obrigada a trazer sempre o bilhete de identidade para evitar ser detida na rua e mandada para onde havia falta de serventes. Vi muitas vezes funcionários brancos chicotearem o meu povo, sob o sol escaldante de Março, quando não trabalhassem suficientemente rápido. Nós, mulheres nativas, éramos muitas vezes atacadas por homens brancos, embora num grau inferior ao que se passa hoje com os soldados portugueses. Sempre vi, onde quer que os nativos estivessem a ser maltratados, algumas mulheres negras erguerem a voz desafiando o seu opressor. Eu sentia-me estimulada pela coragem das minhas irmãs analfabetas, mas ao mesmo tempo sentia-me envergonhada pela minha cobardia e passividade silenciosa perante toda aquela crueldade e injustiça.
“No início de 1956, tive uma experiência decisiva: com cerca de 50 escravos (“contratados”), percorri mais de 1.000 quilómetros. Toda a minha vida eu tinha visto e ouvido “contratados” à minha volta, mas desta vez as vítimas tão próximas eram um testemunho do que eu procurava. Na estrada, os meus irmãos cantavam uma triste melodia em Kimbundu (a nossa língua), lamentando o sofrimento do trabalho forçado, perguntando-se se voltariam a casa e porque não tinham eles morrido antes. O seu refrão dizia que as condições mudariam, elas tinham de mudar algum dia. Eu vi alguns deles a chorar enquanto cantavam. Parámos, então, na aldeia de um destes homens para o deixar despedir-se da infeliz esposa, do seu inocente filho, da pobre mãe e dos amigos. O momento em que o filho de 5 anos de idade perguntou ao pai quando voltaria foi o mais impressionante. Sorrindo corajosamente, o pai tomou o filho nos braços, dizendo simplesmente “eu não sei”. Esta cena comovente fez cair sobre nós um profundo silêncio, quebrado apenas pelo grito do motorista branco: “Vamos embora, rapaz!”. Trocaram-se as últimas palavras e as últimas lágrimas e o camião partiu, ­escondendo a aldeia e o seu povo numa nuvem de poeira e de insegurança.
“As coisas que realmente influenciaram a minha vida foram: os meus pais e a nossa vida familiar cheia de significado, os primeiros sete anos da minha vida passados no ­interior onde vi e vivi muitas situações difíceis, os meus dois professores primários e, mais tarde, os meus contactos com outros estudantes, e particularmente com um agrónomo e um padre Católico Romano. Tive de trabalhar durante um ano antes de completar o 7º ano do Liceu. A caminho do trabalho, tinha de passar pelo populoso musseque Sambizanga, onde a vida dos nativos era muito mais miserável e difícil do que eu alguma vez tinha imaginado. As terríveis condições de vida do meu pobre povo do Sambizanga fizeram-me reflectir seriamente na possibilidade de o ajudar a recuperar a dignidade humana, de mudar a nossa situação nacional e de me juntar às centenas de compatriotas do movimento nacionalista clandestino que lutava pela libertação do nosso país.
“A PIDE, a polícia de segurança portuguesa, tornava-se cada vez mais omnipresente e omnisciente e os nacionalistas tinham de ser muito cautelosos nos seus contactos. Contudo, tentei encontrar-me com alguns dos activistas do movimento clandestino mas, sendo uma adolescente, não o consegui de imediato. Portanto, decidi organizar os meus próprios amigos e comecei por convidar um de cada vez para o chá, lá em casa, e aí perguntava-lhes o que pensavam sobre a nossa situação nacional. Todos concordá­vamos que os Portugueses já tinham ido longe demais, que tinham de ser travados, para que ao menos pudéssemos respirar livremente na nossa própria terra. Alguns desses jovens eram já membros do movimento nacionalista e outros eram encorajados a segui-los. Alguns dos meus amigos devem ter falado com membros do movimento clandestino sobre os meus convites para o chá, pois um membro do movimento naciona­lista confiou-me uma tarefa de responsabilidade. Julgo que esse meu primeiro serviço agradou aos meus compatriotas pois começaram cada vez mais a pedir a minha colaboração. Dei graças por naquela altura estar a trabalhar em vez de estar a estudar, porque isso me permitiu ajudar mais. Um dia fui apresentada à maioria dos líderes e alguns deles não gostaram que uma adolescente se metesse em assuntos tão sérios. De início fiquei um tanto desencorajada por essa desconfiança, mas pouco a pouco ganhei a confiança deles e finalmente deixaram-me ser membro da organização. Nessa altura, eu pude recomeçar os meus estudos interrompidos. Portanto, as actividades nacionalistas não constituem um obstáculo para alguém avançar na sua própria educação.
“Entretanto, os nacionalistas activos deram conta que estavam a ser seguidos pela PIDE. Fiquei perturbada pela presença dum agente branco da PIDE na esquina da nossa casa, que me insultou muitas vezes. Também nunca esquecerei aquele fim de tarde em que um carro da polícia parou ao meu lado, quando regressava a casa levando debaixo do braço algum material nacionalista. Eu mal conseguia respirar, mas o carro prosseguiu quase imediatamente. Quando cheguei a casa, o mesmo carro já estava parado à nossa porta. Apressei-me a entrar em casa por outra entrada para esconder os documentos o melhor que pude, pensando que chegara a minha vez, mas nada ­aconteceu. Naquela mesma noite, com grande desgosto, queimei as fotografias do nosso grupo nacionalista. Porém, guardei alguns rolos fotográficos “perigosos”, não revelados, que eu não queria destruir. Sem perder tempo a jantar, nem dizer uma palavra aos meus pais, saí em busca de um lugar para esconder o meu tesouro. Agora a PIDE podia voltar, não encontraria nada. No dia seguinte, quando ouvia um noticiário de Rádio Brazzaville, um amigo do grupo nacionalista chegou e perguntou-me: “Quem era aquele branco à escuta do lado de fora da tua janela? Foi embora assim que eu cheguei.” Senti-me aliviada por saber que tinha queimado ou escondido todos os ­documentos “perigosos”.
“Apesar de tudo, continuávamos o nosso trabalho, discutindo com os nossos irmãos e irmãs o modo de defender os nossos direitos e como combater abusos e injustiças. Forçada a tranquilizar-me a mim própria a maior parte do tempo, temia pelos meus amigos e nunca lhes contei, nem aos meus pais, as minhas experiências com a PIDE. Queria evitar aumentar a ansiedade deles.
“Foi-me então concedida uma bolsa de estudo para prosseguir os estudos no ­estrangeiro. Era má altura para abandonar o meu indefeso povo à mercê dos Portugueses, e ainda pior altura para deixar os meus companheiros do movimento nacionalista. Fizeram-me uma festa de despedida, na qual um agente da PIDE se apresentou sob disfarce de ir à procura de um amigo, mas nenhum de nós se deixou enganar.
“De coração pesado, deixei Luanda em Fevereiro de 1959 e um mês depois a maior parte dos meus companheiros foi presa. Ainda hoje estão entre a vida e a morte, numa prisão portuguesa. Uma coisa nunca hei-de entender: como e porquê a PIDE me deixou partir de Angola depois de ter vigiado os meus movimentos durante tanto tempo.” [fim do testemunho]
Abalado nos seus fundamentos o mito da adesão total dos nativos de Angola à nação portuguesa, tornou-se mais fácil para os movimentos políticos impor no plano internacional a realidade do nacionalismo angolano. Além disso, desde 1957 naciona­listas de diferentes colónias portuguesas de África procuravam a melhor forma de apoiar a luta no interior dos seus respectivos países.
Eles pretendiam, antes de mais, unir os movimentos de libertação de todas as ­colónias portuguesas. A primeira frente, o Movimento Anti-Colonialista (MAC) foi criada na Europa por militantes do MPLA, do Partido Africano para a Independência da Guiné (PAI), e por nacionalistas de Moçambique, Cabo Verde e São Tomé e Príncipe. Em Janeiro de 1960, por ocasião da 2ª Conferência dos Povos Africanos, o MPLA e o PAI constituíram a Frente Revolucionária Africana para a Independência Nacional das Colónias Portuguesas (FRAIN) e o MAC foi dissolvido. A FRAIN foi por sua vez dissolvida pela Conferência das Organizações Nacionalistas das Colónias Portuguesas em Abril de 1961. Foi no “Ano de África” que os movimentos nacionalistas angolanos encontraram o apoio necessário para a instalação definitiva de escritórios no exterior, junto de governos africanos independentes.
São bem conhecidas as reacções portuguesas à aproximação da proclamação da independência do Congo-Léopoldville: acção militar preventiva, multiplicando as patrulhas e a acção da força aérea para proteger as fronteiras de Angola. Indo muito além das sevícias e medidas repressivas contra a população, a polícia prendeu líderes políticos e personalidades angolanas como o Dr. Agostinho Neto e o Reverendo Padre Joaquim Pinto de Andrade em finais de Junho de 1960.
Numa declaração de 13 de Junho de 1960, o MPLA afirmava que consideraria como sinal de rejeição do uso da força por parte do Governo português o seguinte: “o reconhe­cimento imediato do princípio da auto-determinação para o povo ­angolano, o estabeleci­mento das liberdades políticas, e a convocação antes do fim de 1960 duma mesa redonda com representantes de todos os partidos políticos angolanos, para discuti­rem com representantes do Governo português uma solução pacífica do problema colonial em Angola”.
O MPLA e as outras organizações nacionalistas deixaram clara a sua posição, quando tudo indicava que o governo de Salazar se preparava para afogar em sangue qualquer levantamento nacionalista, provocando-o até, se necessário. Em vez de aceitar discutir as questões que nos opõem à administração colonial, o Governo português respondeu com o reforço do aparelho repressivo no nosso país e massacres do nosso povo. Em Novembro de 1960 vinte e nove presos políticos, na sua maioria de Cabinda, foram sumariamente executados no pátio duma prisão local.
Apelos urgentes chegavam-nos do interior de Angola: as massas reclamavam com insistência planos organizados para uma autodefesa activa. Face à amplitude da repressão e à pressão das massas angolanas, o MPLA definiu mais uma vez a sua atitude perante a obstinação portuguesa. Numa conferência de imprensa em Londres, na Câmara dos Comuns, a 6 de Dezembro de 1960, o MPLA e outras organizações das colónias portuguesas (nomeadamente o Partido Africano para a Independência da Guiné e a Convenção Política de Goa) reafirmaram que o Governo português, em vez de ­considerar as propostas duma solução pacífica da questão colonial, intensificava os preparativos para a guerra. Declarámos que o governo de Salazar só deixava uma alternativa aos movimentos nacionalistas das colónias portuguesas: o recurso à acção directa.
Os Portugueses não hesitaram em demonstrar, por declarações e por medidas concretas, que pretendiam prosseguir os seus métodos clássicos de exploração e a sua luta para serem os únicos donos dos nossos países.
Já há muito que a população de Luanda tinha decidido libertar os líderes do MPLA e outros nacionalistas ali detidos. Apenas o clima de terror que reina no país e a ­consciência nacional do nosso povo podem explicar a audácia dos nossos militantes no ataque às prisões militares e civis de Luanda em Fevereiro de 1961.
Tal como tínhamos previsto, o Governo português, obstinado em manter o seu domínio e o seu sistema de opressão, iria impelir as massas angolanas à acção directa, pela própria força das circunstâncias.
As circunstâncias que precederam o ataque às prisões demonstraram o nível de consciência revolucionária dos patriotas angolanos. Foi a sua maturidade política que os levou a aproveitar a presença de numerosos jornalistas em Angola, esperando a chegada do “Santa Maria”, para melhor alertarem a opinião internacional.
Não é verdade que as pistolas usadas no ataque de 4 de Fevereiro proviessem da República Socialista da Checoslováquia. Elas tinham sido retiradas a polícias ­portugueses, durante um prévio assalto de militantes do MPLA [nacionalistas ­angolanos] a jipes da polícia que patrulham os bairros negros de Luanda. Apesar do seu carácter aparentemente suicida, esses ataques levaram a tomar consciência da situação de Angola, a nível nacional e internacional.
É desnecessário demonstrar a importância dos ataques às prisões militares e civis da capital de Angola, pois foi a partir dessa acção corajosa que o vasto campo da insurreição popular se estendeu por todo o país, e que a insegurança se instalou no corpo e na alma dos colonizadores portugueses.
As forças de repressão reagiram a esses acontecimentos com os meios ao seu dispor. A 5 de Fevereiro, na sequência de provocações durante o funeral de soldados portugueses mortos pelos nossos militantes, as forças repressivas massacraram 3.000 patriotas ­angolanos. Este mês de Fevereiro testemunhou ainda outros acontecimentos desconheci­dos do público internacional.
Vários nacionalistas que tinham participado nos ataques acima relatados, consegui­ram escapar à repressão portuguesa e fugir para regiões mais a leste. Na Baixa de Cassange, distrito de Malange, organizaram os trabalhadores das plantações que se revoltaram contra as práticas abusivas duma companhia agrícola, a COTONANG. Os ataques foram dirigidos contra estabelecimentos europeus, residências oficiais do Governo na região e contra uma Missão católica. No entanto, poucos brancos foram mortos. Mais uma vez, a reacção das forças portuguesas foi brutal: aldeias foram bombardeadas e, segundo algumas fontes, 10.000 Angolanos foram mortos.
O Governador do distrito de Malange, Sr. Monteiro, um Caboverdiano, depois de um inquérito pessoal, enviou um relatório ao Governador-Geral sobre os métodos ­coercivos usados pela companhia COTONANG. Também enviou panfletos redigidos em Kimbundu, onde se expunha a recusa dos Angolanos em cultivar algodão contra a sua vontade. Naturalmente, a companhia colonial obteve o que queria e o Sr. Monteiro foi retirado do cargo.
[O documento “Génese…” conclui: “Foi esse o percurso do movimento naciona­lista angolano até aos acontecimentos de 14 de Março último. Desde então, as organiza­ções políticas e a opinião pública internacional confirmaram que o povo de Angola está firmemente determinado a sair vitorioso da situação actual. E quanto mais a ­insurreição armada alastrar, mais o povo angolano terá a oportunidade de exigir
amanhã a um Governo português negociações sobre a base do reconhecimento da indepen­dência imediata e completa.”]
CONCLUSÃO
Acompanharam o itinerário do movimento nacionalista em Angola, as suas ­exigências e as reacções da administração colonial.
Tentámos traçar os passos essenciais na formação duma consciência nacional em Angola, mantendo-nos ao mesmo tempo acima das actuais lutas de facções. É por isso que não analisámos acontecimentos posteriores ao 15 de Março, que representam um novo capítulo na história do nacionalismo angolano.
A luta pela libertação começou por mostrar o aspecto imediato duma resistência à ocupação militar dos Portugueses e à anexação de terras. Até à chegada de Salazar ao poder, os nacionalistas puderam usar formas legais de luta, mas as suas exigências encontraram cada vez menos eco a nível internacional. Os últimos 30 anos, durante os quais o nacionalismo angolano enfrentou o mais feroz regime de exploração colonial que a África conheceu, representam o grande período da luta clandestina. Durante este período, o povo angolano ganhou energia, coragem e aliados externos. Tudo isto tornou possível a luta armada.
Várias conclusões podem tirar-se, nesta fase da pesquisa, quanto às características do nacionalismo Angolano:
1. É um nacionalismo sufocado, que se desenvolveu num clima de peculiar secretismo. De início, achando impossível organizar as massas rurais, os nacionalistas ­abordaram sobretudo as massas urbanas e uma certa elite, que foram assim os primeiros a ser tocados pela propaganda dos partidos nacionalistas. Além disso, a administração colonial mantinha divisões sociais e criou um fosso entre os Angolanos “civilizados” e “não civilizados”. A maioria das organizações clandestinas adoptou o grupo como base da sua estrutura e esses grupos representam genuínas células de defesa dos interesses comuns dos Africanos.
2. Enquanto o movimento messiânico de Simão Toco não tem ido para além duma desobediência às leis civis, pode dizer-se que o movimento nacionalista angolano mostrou desde o começo um aspecto revolucionário nas suas exigências, na medida em que os partidos, nos seus panfletos, exigiam o derrube do próprio regime ­colonial, mais do que um melhoramento das condições dos colonizados. Compreende-se ­facilmente esta atitude se tomarmos em conta a obstinação e falta de realismo da política colonial portuguesa. Por outras palavras, a reacção da administração portuguesa e a ­permanência das velhas chagas coloniais – trabalho forçado, analfabetismo, miséria social e ­económica e discriminação racial – impeliram os nacionalistas angolanos a radicalizar as suas ­posições. A população nativa não se sentiu tocada pelas poucas medidas de promoção social que o poder colonial introduziu de tempos a tempos no país, como a nomeação em 1953 de dois representantes dos “interesses dos nativos” para o Conselho Legislativo da colónia. De facto, os ditos “representantes dos nativos” viram-se incapazes de fornecer soluções aos problemas da população africana.
3. As organizações surgidas entre os nativos sempre mantiveram completa independência em relação aos partidos da “metrópole”. Nem de longe foram seus subsidiários.
4. Duas importantes tendências se tornaram evidentes no seio do nacionalismo angolano: uma tendência do interior, representada pelo MPLA, outra que se pode considerar “na continuação da fronteira” (incluindo o Congo Léopoldville e Brazzaville). Em termos gerais, até muito recentemente, houve uma coordenação de todas essas tendências, interrompida pelas prisões de 1959. Hoje, a aceleração da formação [sic] da independência de Angola depende duma nova aliança dessas duas tendências.
Estas são algumas das características do nacionalismo angolano. Por fim, é justo mencionar o papel desempenhado pelo nacionalismo angolano no despertar e na formação da consciência nacional das outras colónias portuguesas. A Conferência de Casablanca, em 18 de Abril de 1961, assinalou a materialização dos esforços envidados pelos nacionalistas de Angola para reunir todas as forças opostas ao colonialismo português em África. A acção directa, como um meio efectivo de derrubar o sistema colonial, tornou-se o principal factor de todas as organizações nacionalistas das colónias portuguesas, sob inspiração dos nacionalistas angolanos.

«Angolan Nationalism» - Documento do MPLA à Conferência dos Não-alinhados (Setembro 1961)

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