Foi publicado no 2º volume de «Um amplo movimento…»
Cadete – Sec. da Upa [1ª página, sem assinatura e com letra diferente da de Cadete] O Comandante que se encontra em Songololo, escreveu pª o comandante militar do Kaluka de nome Samuel Delepanta inf. que o grupo que seguia era um grupo do mov. pertencente aos Caluandas e portanto n/ inimigos. Deverá proceder captura dos mesmos e conduzi-los à fronteira do Congo ou comunicar o Comando Geral Sr. João Baptista. Um velho de nome Manuel Sansala – do Bembe foi de opinião de os prender e receber o material e depois matá-los. O Sub-Comandante do Bembe Manuel Carlos, escreveu uma carta para Kaluka pedindo a captura dos mesmos e conduzi-los até à fronteira, devendo deixar, o material, medicamentos e o dinheiro de que eram portadores. Ao fim de 3 dias um indivíduo chamado Pedro Timóteo – guitarrista, procurou-o e disse-me que o grupo do movimento tinha chegado ao Kaluka bem recebidos e deixados passar para o Bembe. Mas depois apareceu uma carta do sr. José Manuel – “Secretário Geral de Angola” residente no Fossier [Fuesse] pedindo a captura imediata dos homens. Nestas condições o adjunto comandante do Kaluka mandou Jeunesse próximo do rio Kaluka, onde já se encontrava o referido contingente de nacionalistas. Foram presos, amarrados de mãos atrás, recebidos os medicamentos, armamento, uma bandeira e emblemas e em dinheiro 27.000$00. Foram mandados para o Fossier acompanhados por tropas da Upa e com 2.000$00 de passagens para Léopoldville. Passados dias, tive conhecimento que os homens tinham sido mortos no Fossier. Dia 24 de Outubro preparei a viagem para Léopoldville, quando cheguei ao Fossier onde fui informado por dois indivíduos de Malanje, sendo um deles de nome Simão. Este informou da morte dos patriotas, da forma que foram mortos, assim como o carrasco dos mesmos que se supõe chamar-se Vieira – motorista. Residente no Fossier – ordenança do Presidente André Casimiro – Mostrou o emblema do MPLA e disse que em casa onde se encontrava a bandeira de pano. * * * * * [Outra folha, assinada por Cadete, mas manuscrita por outra pessoa] Exemplo do Decreto-Lei nr. 2/9/61 da “UPA” assinado por João B. Traves Ficou determinado: – Que não se passava nenhuma guia a indivíduos que quisessem refugiar para Congo. – Que seriam presos quaisquer suspeitos que viajassem sem guia e julgados como espiões. – Que seriam considerados inimigos da “UPA” todos [os] nacionalistas que criticassem ou desdenhassem as opiniões dos dirigentes da “UPA” – Que a única Repartição competente que passa guias [de] estrangeiro é a do Comando dos Serviços onde se encontra o legal Representante do Sr. Presidente Geral da “UPA”, João Baptista Traves Pereira. – Que seria vedada a passagem a indivíduos desconhecidos sem a competente identificação dum documento passado por dirigentes da “UPA”, onde o nacionalista pertencer. 6/12/61 [assinatura de Cadete] * * * * * [Nova folha, escrita e assinada por Cadete] Relatório (extractos) O signatário foi oficial de diligências do ex-Posto Administrativo do Bembe, membro e cooperador da “UPA” desde o segundo trimestre do ano de 1960. Em treze de Março do corrente ano, depois dos tumultos de Fevereiro em Luanda, a Sede da “UPA” em Léopoldville, enviou ao Norte de Angola uns avisos anónimos para em quinze do referido mês atacar os colonialistas portugueses. Durante o período decorrido entre Maio a treze de Março, respectivamente dos anos 1960 a 1961 recebia-se da “UPA” vários panfletos que falavam da pena da morte de todos os Angolanos suspeitos de traidores à Pátria Angolana, bem como de todos os mestiços. Em face disto efectuou-se vários ataques naquela data – 15-3-61. Bembe não tinha obedecido tal aviso, aguardando melhores esclarecimentos do assalto, visto que não era portador de nenhum material de guerra e temido por o Toto – força militar inimiga distar do Bembe apenas vinte e um (21) quilómetros. Manteve-se calmo até doze de Abril, data da invasão do Posto Lucunga, assalto comandado por um “gunza” de nome Antoine Geral, natural do Posto Lembua. Tendo conhecimento da ocorrência do Lucunga dentro do edifício da Administração do Concelho do Bembe, ainda em exercício das suas funções, perguntou ao aspirante administrativo se sabia do paradeiro do seu tio Sebastião António Cadete ao que lhe respondeu que provavelmente teria sofrido igual sorte à dos brancos [...] Ainda em Abril, dia dezassete, o Bembe foi atacado sendo o Exército Comandado por senhor Pedro Castelo do Culo que passou depois a ser um dos chefes dos antropófagos. Como Bembe e Lucunga não haviam mais brancos, os militantes da “UPA” e seus dirigentes não ocupavam doutro serviço a não [ser] da matança dos seus legítimos irmãos e sobrinhos mestiços. Numa data que não precisei, foi morto um mestiço de nome José Alexandre, sapateiro, natural de Ambriz e que viveu longos anos no Bembe, acusado de traidor à Pátria Angolana, embora ser membro do referido movimento da dita “União das Populações de Angola”! [...] O mesmo signatário escapou da morte duas vezes. Desde Abril a Agosto, os estranhos do Bembe viveram na maior opressão do que a dos colonialistas portugueses. Os dirigentes da “UPA” e seus militantes tinham-se transformado em “dinguango” pois que só queriam matar os outros sem motivos ou razões falsas. Em princípio do mês de Agosto, o signatário recebeu chamada do senhor Comandante e legal Representante do senhor Presidente Geral da “UPA”, João Baptista Traves Pereira, para prestar serviços na secretaria do Comando dos Serviços. Dado que os dirigentes da “UPA” são indivíduos destituídos de consciência e raciocínio e somente dotados de má fé, teve de aceitar embora temporariamente o trabalho de secretaria, e isto também para se livrar da morte. Depois do ataque do Toto efectuado em quinze de Maio do corrente ano, como se ouvia dizer em certas terras do Norte que os nossos irmãos bailundos se revoltaram contra os nacionalistas, o sr. Comandante João Baptista e seus sequazes determinaram a morte de todos os bailundos mesmo sem ideologias de revolta. Assim foram mortos vários bailundos e bailundas inclusive crianças, mesmo pedindo perdão. O signatário e outros estranhos do Bembe, principalmente indivíduos sem conhecimento da língua, não voaram fugindo às atrocidades que a “UPA” exerce por sermos destituídos de asas. Pois não se sabia quem havia de ficar para gozar tão amarga Independência. * * * * * Em meados do mês de Setembro estando ausente o Sr. Comandante militar João Baptista Traves Pereira em missão de serviço, foi informado verbalmente por senhor António Angelino de Quindege, que tinha chegado do Songololo uma carta do Comandante daquela Unidade destinada ao Comandante do Caluca, senhor Samuel Dela-Pante, informando-lhe que tinha atravessado a fronteira um contingente devidamente armado dum dito Movimento de Libertação de Angola (MPLA), com dois mestiços e nossos irmãos de Nambuangongo. Este Movimento é de gente de Kaluanda. São contrários às nossas ideias e no entanto inimigos. Deverá efectuar captura do mesmo ou comunicar senhor Comandante Geral João Baptista. O signatário acompanhado do senhor Angelino teve que se deslocar para o Quartel do Comando dos Serviços, perguntar ao senhor Sub-Comandante Manuel Carlos, do Bonde – campeões da matança, a fim de constatar se tinha recebido alguma carta de Léopoldville ao que respondeu que recebera uma carta vinda do Songololo mas estava escrita em Kicongo. Recebida a mesma verifiquei que o seu conteúdo correspondia com a informação do senhor Angelino. Perguntei as decisões que tinha dado e respondeu-me que por enquanto nenhumas. Enquanto conversava com Angelino, ouvi do referido sub-Comandante, a ditar uma carta em Kicongo e que era escrivão da mesma um moço de nome Huancana Miguel, visto o mesmo sub-Comandante ser analfabeto. Na carta dizia: Sr. Samuel, o nosso Comandante está ausente mas no entanto efectua-se a captura e recebe-se tudo que trouxeram e seguem presos até Léopoldville. Solução dada por nosso velho Manuel Sansala. Em face destas decisões de gente tão ignoda [sic], e como se ouvia quase na boca de todos os militantes por exemplo Huancana Miguel e Neves Nicolau e muitos outros que os “guisacos” têm de ser mortos e recebamos os materiais. Se chegarem aqui será um perigo para nós. Porque eles venham conhecer onde a gente esconde e vão dizer os brancos. Vendo o risco de vida que corria para aquele contingente irmão, e saber que quando a “UPA” fala, fala mesmo, e interrogando dois indivíduos de nomes Daniel Ernesto Velozo, ex-microscopista do Combate à Doença do Sono, assimilado, natural do Vamba-Bembe, e Paulino Eduardo, do Bonde, ex-dirigente da “UPA”, o que significava a palavra: Libertação; baseando-me no MPLA a resposta foi unânime: São guisacos. E portanto merecem a morte. Estes indivíduos encontravam-se nesse momento em minha casa, ouvir noticiário, numa mata de nome “Quintumbo”. O referido Veloso, assistiu à chegada do tal contingente ao povo Caluca e foi o portador da carta do Songololo para o Quartel do Bembe, segundo o mesmo me havia declarado por ser compadre do finado meu tio Cadete. Que os homens traziam porrada de medicamentos, material, emblemas e bandeira. Para tentar remediar o mal tinha escrito uma carta confidencial e urgente para o senhor Baptista porque talvez fosse o único que me compreendia, pedindo-lhe salvar aquele contingente, visto se tratar de filhos genuínos de Angola e que lutam pela Independência do nosso País. Chamei-lhe ainda atenção de ser o único responsável dos massacres ao contingente do “MPLA” se isso vir acontecer. Carta que ainda se encontra no arquivo do Bembe, isto é se a não trouxe consigo. Dias depois fui visitado por um sujeito de cujo nome Pedro Timóteo, guitarrista, natural do povo Pinda-Caluca acompanhado do seu miúdo Elizeu, natural de Lobito que me informou pessoalmente o que se tinha passado com os homens do “MPLA”. Que traziam material, medicamentos, uma bandeira de pano do seu movimento, emblemas onde se liam “MPLA”, 27.000 em dinheiro de escudos, um aparelho de rádio de consumo de pilhas de lâmpada e um pequeno aparelho que ele Timóteo desconhecia. Perguntei- -lhe se se tratava dum Posto de Emissora e disse-me que nunca tinha visto semelhante aparelho. Que foram presos já próximo do Rio Caluca quando receberam uma carta do senhor Secretário-Geral da “UPA”, José Manuel Peterson. Que dos artigos que eram portadores, tinham sido recebidos e apenas lhes tinham sido entregues 2.000 escudos para passagens do Comboio a Léo. Que o aparelho de rádio estava sendo utilizado para ouvirem noticiário. E que os restantes escudos seguiriam à mão dos Jeunesses. Que sabia informar porque na altura prestava serviços de escrita no referido Quartel. Que ele tinha recebido a minha carta para não maltratar o referido Contingente até ordens do Sr. Comandante Baptista. Que foram amarrados de mãos atrás mas não espancados. Que eram obedientes, inteligentes. Perguntei-lhe se quando os deram a voz de prisão não mostraram caras de revolta ao que respondeu que sofreram com resignação. Passado dias constou-me por alto que os coitados homens tinham sido mortos no Fuesse. Logo que o Sr. Comandante Baptista regressou da viagem, perguntei-lhe se tinha recebido uma minha carta confidencial e que démarches havia dado sobre o assunto. Respondeu-me com a cara de pouco amigo e disse que tinha recebido sua carta e escrevi para o Samuel Dela-Pante. E mais não me disse. Em face dos acontecimentos aborreci viver no meio dos irracionais, que não sabem o que querem e então pedi por escrito ao Sr. Comandante, queixando da pobreza, ter irmão menor no Congo e ter que acompanhar minha família para Léopoldville. Só assim que teve de me demitir e passar guia e partindo no Bembe dia 24 (vinte e quatro de Outubro). O mesmo Baptista era companheiro de viagem do Bembe ao Fuesse. Chegámos ao Pinda-Caluca dia 25. Encontrámos o Comandante Samuel ausente em Léo e o Timóteo ter ido ao Quartel fazer parte dum ataque, pois que os brancos se dirigiam para Quartel da “UPA” em Caluca. No dia seguinte, o povo Pinda estava cheio de gente fugido da estrada onde os brancos perseguiam os nacionalistas. Partimos nesse povo no dia 26 chegando ao Gando dia 29, onde encontrámos um indivíduo de nome Afonso Lopes, Comandante daquela Região, e que dizia ser cunhado do senhor Presidente Geral Holden Roberto. Embora ter cara de carrasco, mal chegámos simpatizou-se comigo chamando-me para confidenciar com ele. Na nossa conversa perguntei-lhe se por ali tinham passado alguns gajos do movimento do “Pelo” como eles o chamam, ao que me respondeu apressadamente que os gajos ali haviam passado e foram mandados levar correio para o Salazar. Que no Fuesse não havia brincadeira. Quando lá chega um “guisaco” é tratado logo da saúde. O nosso trabalho está prosseguir. Depois perguntou se fosse também comigo, qual seria a minha reacção vendo um inimigo em minha perseguição. Minha resposta foi sem demora – matá-lo. Vi o homem, pobre do espírito, a sorrir. Não quis dar-nos passagem para Fuesse porque nos dizia que os brancos patrulhavam toda a estrada da Damba-Salvador. Que poderíamos permanecer dois ou três dias até que houvesse passagem. Ainda no mesmo dia descobrimos as suas manhas. Pois os homens do lado do Fuesse passavam à vontade e para nós haviam brancos. Ficámos logo atrapalhados embora semi-calmos, visto o terreno que pisávamos era bastante falso. Nesta tragédia sr. Baptista havia passado, finalmente mandou perguntar ao Sr. Presidente André Casimiro do Fuesse se poderíamos passar. Só no quarto dia fomos autorizados passar. Chegámos à 1ª Secção do Fuesse-Gigima ali encontrámos um indivíduo de Malange de nome Raimundo, ex-soldado do Exército Português fugido do Noqui! Como se tratava de indivíduo da nossa linha de baixo, solicitei-o se sabia alguma coisa dum contingente do “MPLA” que tinha sido preso do Caluca e conduzido ao Fuesse. Respondeu-me que “Tua bitixa ku mu lenge”. Que Fuesse afamado não havia brincadeira que era tratado de saúde sem demora possível qualquer sujeito oposto às ideias da “UPA” e que somente a “UPA” recebia a Independência de Angola. Continuámos a viagem até ao Fuesse propriamente dito. Encontrámos apenas o Sr. Presidente geral André Casimiro. O qual determinou que fôssemos recebidos todos e quaisquer papéis escritos de que éramos portadores. Depois desta ordem o signatário estava cheio de horror por ter nos bolsos alguns apontamentos de certas ocorrências. Depois fomos chamados ao Bureau e interrogados quanto à viagem e se, conhecíamos outro movimento além da “UPA”. Ao que respondemos que nunca ouvimos em Angola outro movimento senão o da “UPA”. Satisfeitos connosco embora cinicamente, disse- -nos que havíamos de esperar por sua Excelência o Secretário-Geral de Angola, José Manuel Peterson que se encontrava ausente em Léo. Fomos conduzidos até ao Quartel dentro duma mata tremendíssima que mal se via o sol. Ali, encontrámos dois sujeitos de Malange um deles de nome Manuel Simão, ex-motorista da Brigada de Pentamidinização Móvel nº 4 que me informou da matança que se efectuava no Fuesse por Dirigentes da “UPA”. Preveniu-me que tivesse cuidado em conversar com os homens da “UPA” pois que todos eram espiões. Aproveitando a oportunidade perguntei-lhe do movimento do “MPLA” e do seu contingente que ali tinha vindo preso. Disse-me que logo que aquele contingente aí chegou foi imediatamente condenado à morte. Que ali não havia brincadeira. Que [por] tudo e por nada só havia justiça da pena da morte. Que o carrasco que os tinha executado era um indivíduo de nome Vieira, que usa “pera”, um tal motorista que não sabia falar português. Indicou-me o caminho que seguia no local onde têm morto os homens opostos à “UPA”. Que antes da morte são submetidos num “Capanga”. Que os primeiros executados tinham sido os mestiços e depois os irmãos de Nambuangongo. Que éramos felizes por não termos encontrado um tal ordenança do Presidente Casimiro de cujo alcunha “Barriga”. O tal Barriga é tão prejudicial como a cobra chamada “Bamba”. Que bastava compreender o seu nome para o temer. Que sendo preso e conduzido ao Fuesse, era o bastante para perder a esperança de viver. Pois os carrascos da “UPA” matavam os outros como se fossem galinhas. Pedi-lhe se poderia já agora, mostrar qualquer objecto que possa servir de identificação do referido Contingente. Imediatamente foi buscar um emblema de metal onde se lia “MPLA”. Depois, acrescentou que em casa onde Simão dormia estava lá também uma peça de bandeira do tal movimento. E se precisava de mais esclarecimentos que ele estava disposto a fornecer. Que o tal Raimundo vinha vigiar-nos e que tivéssemos muita cautela, pois que a “UPA” não conhece parentes. Achando que as informações eram mais que concretas, dei o assunto por terminado. Isto é tudo quanto aconteceu. Mais o signatário acrescenta que no Bureau da “UPA” estão alguns rapazes do Bembe e o mesmo Baptista que nenhum deles poderia desmentir o seu relatório. Que tudo quanto disse é relatório de carácter bem seguro. Ressalvo os erros e rasuras. Léopoldville, 6 de Dezembro de 1961. Aristides Mateus Cadete.
Relatório de Aristides Mateus Cadete e cópia dum decreto da UPA (Léopoldville)