Carta de Viriato da Cruz a «Caros amigos»

Cota
0011.000.052
Tipologia
Correspondência
Impressão
Dactilografado
Suporte
Papel comum
Remetente
Viriato da Cruz
Destinatário
Caros Amigos [Lúcio Lara e Amílcar Cabral]
Data
Idioma
Conservação
Bom
Imagens
6
Observações

Foi publicado no 1º Vol. de «Um amplo Movimento...»

Carta de Viriato da Cruz
[dactilografada]

Conakry, 4 Março de 1960

Caros Amigos,1

1 – Até hoje, o bureau, a que era destinada a credencial, ainda não me ouviu, está sem saber o que me trouxe aqui, apesar de todas as diligências que venho fazendo para esse fim. [Acrescentado à mão, na margem: Tive entrevista hoje, dia 5. Relato-a a f.3 e 4 desta carta] Ontem fui à sede do organismo com intenção de falar com o secretário-geral. Estava lá, mas não me atendeu. Que estava muito ocupado. Mandou no entanto, um outro camarada dele iniciar conversações comigo. Esse último, depois de ouvir o início da minha exposição, disse que não tinha competência para resolver algo comigo, porque só há dois responsáveis competentes para resolver assuntos de relações exteriores. Comunicou-me que haveria de informar imediatamente ao secretário-geral sobre a natureza das negociações; e marcou-me entrevista para amanhã à tarde na sede do organismo.
Abstenho-me, neste momento, de fazer comentários sobre todas essas relações de corda bamba.
2 – O L. [Lúcio Lara] sugeriu que começássemos a preparar o n/ trabalho para a conf. afro-asiática. Concordo. Proponho que o próprio L., com base no n/ trabalho em Túnis – e tendo em atenção principalmente todas as lacunas, deficiências e carências verificadas no n/ trabalho no decurso da conf. de Túnis – apresente, em uma semana, um projecto de programa para a n/ delegação à conf. afro-asiática. Esse projecto poderia entre outros pontos, tratar de: composição (número e nomes) dos delegados; enumeração dos principais relatórios que deverão ser preparados e impressos com antecedência; em que deverá consistir o nosso trabalho de propaganda e agitação durante a conf.; quais as delegações estrangeiras que deveremos contactar necessariamente; discriminação da matéria a tratar com cada uma das delegações propostas; qual o material que deveremos preparar com antecedência e destinado à imprensa; quais os principais pontos, respeitantes aos nossos países, e que deveremos esforçar-nos por fazer sair nas Resoluções finais (isso, para facilitar o necessário trabalho de corredor); qual deverá ser o responsável pelo trabalho de propaganda e agitação no decurso da conf.; qual de nós deverá encarregar-se de marcar entrevistas e de preparar e fazer o correio para a imprensa no estrangeiro, para organismos e individualidades no estrangeiro e para a nossa gente responsável em Portug. e outros países; como começar já a adquirir finanças para a Conf.; qual de nós estará encarregado de redigir um breve relatório político sobre a conf. e logo depois do fecho dela.
O L. deverá ainda apresentar um breve Regulamento para a delegação (questões de disciplina; normas sobre as relações dos delegados com gente estranha, etc).
[À margem:2 De acordo. Estes próximos dias vos enviarei o projecto de programa. A única forma que vejo pª finanças é o K. Não sei que possibilidades imediatas haverá de pedir pª Lx.]
3 – Acho indispensável escrevermos já, urgentemente, ao Secretariado da Conf. afro-asiática, dizendo: que durante a conf. de Túnis contactáramos com a sua delegação; que das conversas, então havidas, ficámos com a impressão de que o Secretariado nos convidaria a participar da próxima conf.; que efectivamente estamos interessados em participar dela; que o nosso movimento, que participou da conf. de Túnis c/ o nome de MAC, adoptou durante a conf. de Túnis o nome de FRAIN, conforme aviso publicado no nº7, de 30 de Janeiro, do jornal da 2ª Conferência dos Povos Africanos; que, finalmente, aguardamos que o Secretariado nos informe com bastante antecedência se a FRAIN será convidada à Conf., a fim de começarmos a preparar-nos para ela.
Penso que essa carta para o Secretariado deverá ser escrita já em papel timbrado. [À margem: Vou escrever em p.t.]
4 – Estou sem saber que démarches vocês vêm fazendo nos países em que vos encontrais ou em outros países. Acho que seria conveniente que nos fôssemos pondo uns aos outros ao corrente, com regularidade possível, das démarches de cada um.
[À margem: Aqui além de despachar o correio e tentar contactar c/ gente nossa nada mais posso fazer. Vou dia sim dia não ao Bourse.3 Ainda ñ falei c/ Akwino [Aquino de Bragança].]
5 – Ciente de que o Abel [Amílcar Cabral] encarregou o Mário de redigir o Estatuto para a Associação dos Estudantes. E o que foi feito do projecto de Estatutos, apresentado pelo Horta, a meu pedido? Penso que o trabalho do Mário deveria ter base também no que o Horta já fez. Se não é esse o caso, acho que estamos a incorrer num método condenável pelo que ele representa de esbanjamento de energias e de falta de aproveitamento de boas-vontades.
[À margem: Dei ao Abel os Est. do Horta e por carta do Horta penso que eles vão tentar melhorá-los]
Não sei também se o facto de o Horta ser branco teve influência na nova orientação dada à criação da Associação de estudantes. Mas discordo absolutamente que as considerações de cor e de raça sejam erigidas em princípios da nossa política (mesmo nacionalista) e do nosso trabalho. Não considero a chamada África negra como reserva rigorosamente só para negros, e muito menos admito que na luta organizada e popular pela libertação dos nossos países só haja lugar para negros. (Serei eu um negro? Com favor de quem?). Acho que, nessa matéria, o nosso princípio deve ser: Todos os Africanos (de todas as cores) provadamente anti-colonialistas são bem-vindos nas fileiras da luta pela liquidação do colonialismo nos nossos países. O mérito da participação nessa luta deve provir das qualidades de cada Africano, considerado individualmente, sem considerações de cor da pele ou de árvore genealógica. A aplicação rigorosa desse princípio pelo método selectivo é que deverá decidir da composição étnica das nossas fileiras. Essa maneira de proceder é a única que me parece justa, que mais pode beneficiar a nossa luta, e que permite também liquidar pela base possíveis acusações de estarmos a fazer uma política racista – intolerável hoje em qualquer parte do mundo. Acho que as comunidades negras (predominantes, de longe, em número) podem libertar-se completamente de todas as sujeições e podem progredir, sem necessidade de fazer uma política baseada em princípios racistas (velados ou expressos). Aliás, nem outras foram as teses da 1ª conferência dos povos africanos em Accra.
[À margem: Estou em absoluto de acordo que devemos excluir das n/ fileiras todas as tendências rácicas ou tribais. Impõe-se mesmo que em [?] trabalhos próximos batamos essa tecla. Há que contudo vencer cautelosamente todas as reservas dos nossos compatriotas, mesmo das n/ fileiras. Realm/ a situação actual de África não permite que o povo negro monopolize o epíteto de Africano. Há brancos e mestiços cuja «africanidade» é também indiscutível. De acordo em que há que seleccionar rigorosam/ todos os elementos, atendendo sobretudo à posição anti-col. à participação na luta pela libertação q. cada um assuma]
6 – Recebi, no dia 1, carta do Miguéis.
Ele pede que o considerem militante do FRAIN. «Ponho-me desde já – acrescenta ele – à disposição da Frente e aceito encarregar-me de todo o trabalho da Frente nestas regiões.» Informa que o MPLA não chegou a aliciar aderentes nos Congos «por o plano, então em preparação, da sua expansão nos dois Congos, haver sido prejudicado com a prisão dos nossos companheiros».
Ele informa ainda: «... por cá, os efeitos do colonialismo, agravados com o acentuado espírito tribalista que domina as gentes destas terras, têm influenciado bastante na divisão que se verifica entre os nossos compatriotas. Os cabindas não se consideram angolanos; os santomenses são só santomenses e os caboverdianos unicamente caboverdianos... Existe até uma associação legal de cabindas, bastante discriminatória no tocante a originários de outras partes das colónias portuguesas. Assisti à sua fundação e tudo fiz por sabotar a sua orientação, por intermédio de alguns estudantes liceais, actualmente em França, filhos de cabindas cá residentes. Actualmente, a acção de tal associação se encontra praticamente paralisada. Uma parte da sua massa associativa começa a aperceber-se da nocividade do seu carácter separatista.»
Ele acha que os naturais das colónias portuguesas, residentes nos Congos, deveriam «ser directamente integrados na FRAIN». Segundo o Miguéis, aparecer lá, pelos Congos com um M.P. de Libertação de Angola (sublinhado pelo Miguéis) seria «acordar» o separatismo que ele diz existir por lá.
[À margem: A carta do Miguéis a que o V. se refere dá-me pessoalmente um novo alento, pela s/ decisão de unir os seus esforços aos n/. Pena que o MPLA não tenha ali mais gente. Gravíssimas essas questões tribalistas... Prevejo dificuldades extremas. De acordo que seria de os integrar na FRAIN. Mas nós não definimos ainda bem como se processará a integração de indivíduos. Focámo-lo em conjunto, mas não a especificámos na Carta, a qual prevê apenas concretam/ a integração de organizações.]
Ele informa que, depois das prisões, a sua ligação com o interior foi interrompida. «Entretanto – acrescenta – tenho possibilidades de restabelecê-la, mas utilizando via muito morosa, única, de momento, possível, porque desde Janeiro do ano findo, a pide controla e dificulta com brutal rigor todas as deslocações de pessoas de e para as povoações.»
Informa ainda que, a partir de 15 de Março próximo, irá fixar-se em Ponta Negra, onde se dedicará «exclusivamente ao trabalho de organização da nossa gente.» [À margem: Sabes a direcção dele em Ponta Negra?]
Diz que todas as missões que lhe haviam sido incumbidas até à altura em que teve ligação com o interior foram por ele cumpridas.
De um modo geral, a carta do Miguéis é animadora.
Claro que ele pede que se lhe diga, «na volta do correio», as obrigações e deveres que a sua militância no FRAIN implica.
Sobre este pedido, não sei o que dizer, porque a FRAIN não tem ainda um Regulamento interno...
Em carta que lhe escrevi antes de ter recebido a dele, de que vos estou dando notícia, pedi-lhe que encarasse a possibilidade de ele dar um salto até aqui. Ele viria bem informado sobre os pontos de vista dos nossos compatriotas do Congo, viria por alguns dias, e regressaria com planos e programas traçados aqui por comum acordo. Sucede que devo responder à sua última carta, o que não poderei fazer sem ouvir o vosso parecer sobre as questões que relatei atrás. Fico aguardando, pois, o v/ urgente parecer.
7 – Creio que vocês se esqueceram de avisar os correios em Túnis para reenviar para aqui os meus pacotes com livros que despachara em Berlim. Resultado: esses pacotes foram devolvidos à procedência. Chato, porque penso que as nações, as pátrias, constroem-se com homens e com livros, e não com uma ciência infusa ou improvisada.
[À margem: Erro lamentável dos correios, pois até um aviso que chegou na véspera do m/ embarque pª ir levantar os livros à Alfândega, o q. já não era possível, eu devolvi aos CTT c/ pedido expresso de reexp. pª aí.]

Dia 5 de Março

8 – A entrevista a que me refiro atrás sempre se realizou, ontem, depois das 17 horas. Recebeu-me o secretário-geral do organismo4. Estavam presentes também o ministro que esteve em Túnis5 e o H.M. [Hugo de Menezes].
Para essa entrevista preparei-me previamente (e com a assistência do H.M.) da seguinte maneira:
a) Fiz uma pequena nota com os pontos que eu deveria desenvolver oralmente. Esses pontos são: Eu vinha como emissário. Queria saber se a credencial foi aceite e se o bureau estava na disposição de entabular negociações comigo. Expor negociações anteriores: o memorandum que enviáramos por mão própria em Maio de 59. A transformação do MAC para FRAIN. Definir o FRAIN. Informações sobre o FRAIN (dadas por minha iniciativa e a pedido). = O que pretende aqui o FRAIN: abertura bureau; autorização para imprimir e publicar material aqui; utilização Rádio; questão perseguidos políticos; asilo e problemas dele decorrentes. = Fontes do sustento material da actividade e da delegação do FRAIN aqui: Contribuição vinda dos nossos países ou de compatriotas nossos; trabalho pessoal e remunerado de cada um dos delegados habitando aqui; donativos da solidariedade internacional. = Perspectivas próximas da situação da delegação do FRAIN aqui: com a independência do Congo será provável que os angolanos partam para este país.
b) Dactilografei, antes da entrevista, um memorandum com os pontos principais da minha exposição, o qual deixaria em poder de quem me entrevistara, depois de concluído o encontro.
No começo da entrevista, o meu interlocutor mostrou não estar disposto a ouvir exposição oral minha, pois iniciou o diálogo pedindo-me que escrevesse uma nota do que eu pretendia e que lhe levasse essa nota na próxima segunda-feira, dia 7. Foi então que lancei mão do memorandum que havia dactilografado e a que me refiro na alínea b). Ele leu o memorandum. Passou em silêncio sobre os pontos em que eu explicava o que era o FRAIN e em que eu expunha os princípios fundamentais da Frente. Ele atacou, no entanto, os pontos em que eu discriminava as pretensões da Frente. O meu interlocutor disse-me então que os princípios do seu partido, diante de casos como o nosso, eram: os partidos que não estavam suficientemente organizados deveriam trabalhar à la place, nos seus respectivos países, até se organizarem bem. No entanto, perante o caso de haver militantes de um partido aqui refugiados, o seu partido (dele, secretário) permite que os tais refugiados se organizem aqui; mas a manutenção do bureau e dos membros da organização aqui constituída corria a expensas dos interessados. O partido do meu interlocutor ajuda materialmente a outras organizações, no seguinte: impressão de jornais e panfletos; correio (despesas de); utilização da rádio.
Sobre o trabalho individual de refugiados ou militantes de organizações estrangeiras: Eles estão interessados em dar emprego a técnicos (agrónomos, electrotécnicos...). Relutam porém em dar emprego a indivíduos portadores de uma especialidade técnica «floue» (indefinida, indistinct, ill-defined) (o termo «floue» foi o utilizado pelo meu interlocutor). Em uma palavra: não dão emprego a quem não tenha uma especialidade técnica de interesse imediato para o país.
Estão de acordo em que os angolanos partam para o Congo, depois da independência deste país.
O caso do Mário, com a agravante da doença, foi apoiado pelo ministro que estava presente, como eu disse atrás. Aceitam que o Mário venha quando ele quiser. Acham que o Mário, dado o seu longo trabalho na Présence Africaine, poderá trabalhar aqui no jornalismo e na rádio. Avisámos, no entanto, que o Mário não tinha meios para a viagem. O meu interlocutor não disse que o seu país não podia subsidiar a viagem do Mário [O sublinhado é de Lúcio Lara]. Deu a impressão de que haveriam mesmo de ver a possibilidade de lhe subsidiar a viagem. Porém, ele nada disse de concreto e de definitivo a respeito desse subsídio de viagem.
Em face de tudo quanto ouvi, faço o seguinte resumo:
1 – Está estabelecido pelo secretário-geral que o bureau pode ser aberto.
2 – O bureau será mantido pelo FRAIN, bem assim como a subsistência dos delegados do FRAIN aqui residindo.
3 – Eles ajudam no respeitante à impressão de material, despesas de correio e utilização da rádio.
4 – Quem quiser vir pode vir nas condições da alínea 2).
5 – O Mário pode vir já, e tem possibilidades de ser ajudado logo após a sua chegada.
A entrevista durou cerca de 10 minutos. Notei falta de uma esperada e justificável atenção e solicitude em relação aos nossos problemas. Fiquei com a impressão de que eles deram mais atenção ao facto de poderem aproveitar-se de técnicos do que ao nosso facto político, isto é, os problemas dos nossos países, do nosso movimento, da nossa luta e dos nossos militantes na qualidade de combatentes políticos e não apenas de técnicos.
(O H.M. e eu também ficámos ainda com a impressão de que houve até uma insuficiente deferência para com o emissário do FRAIN isto é, para comigo. Digo isto entre parêntesis, porque efectivamente não tem o valor dos outros casos que expus atrás e que são de interesse colectivo).
No entanto, a pedido do meu interlocutor, deverei ainda falar com ele na próxima segunda-feira, dia 7. Talvez para me transmitir a confirmação oficial do que ele me disse; se bem que ele tem autoridade suficiente para tomar decisões relativas a casos como o nosso.
Eis o que tenho a comunicar-vos sobre a entrevista de ontem. Fiz um relato objectivo, sem carregar nas cores e sem adoçar ângulos, pois não quero que façais cálculos, arquitecteis esperanças e aumenteis desesperos que ultrapassem ou estejam aquém dos limites da realidade real.
Talvez não se tenha conseguido tudo quanto muitos de nós esperavam. Mas, efectivamente, alguma coisa se conseguiu, em matéria de permissão e de promessas. (Não digo isto para dar a minha opinião pessoal. Falo objectivamente).
Que pensais de tudo quanto expus? Que decidis concretamente em face desse resultado?
Espero me respondais imediatamente após a recepção desta carta. Essa urgência é imposta por muitas razões, entre as quais o já não ter justificação a minha estadia aqui, em virtude de estar quase finda a missão de que fui incumbido pelo FRAIN. Preciso, portanto, de tomar as minhas decisões.
[À margem: Mais um passo em frente. Temos de nos habituar a mta coisa chata. Há mto que nos parecia que os camaradas interessam-se + por gentes que os sirvam directam/, do que em atender aos problemas difíceis de organizações como a n/, que se apresenta modestamente a pedir apoio. Não há maneira de nos curarmos de uma certa dose de idealismo, que a cada passo nos faz sentir desilusões. Mas o facto é que é esse idealismo que ainda nos mantém. Há muitíssimo de positivo no que ficou resolvido (esperemos que concretam/).
Permanece porém o problema económico. Já que eles nem ao menos nos garantem trabalho, é esse problema que temos de atacar. Pª já ao que parece podem permanecer o H.M. ou M. e o Abel. Pª já resta o probl. V. [Viriato da Cruz] que ainda não sei como está mesmo neste momento (talvez não tivesse interesse) e do AC. [Amílcar Cabral] (cujos planos ainda ignoro) e o meu (acresc. de mulher e filho).
Em princípio penso que o bureau pode funcionar c/ a presença e ajuda económica dos que obtiverem trabalho. Funcionará deficientemente, pois é difícil satisfazer simplesmente os deveres do trabalho e da luta. Mas haverá um bureau pela 1ª vez. Isso acho ser positivo. Creio que em face dos resultados tb. não haverá inconveniente em que o Abel se instale com a família logo que possível em Conakry.
O Mário e o H.M. poderão encarregar-se de ajudar os três.
Quanto ao V não sei se ele pode ficar ou não. A s/ profissão podia garantir-lhe um emprego aí, mas será que...
Quanto a mim, possuidor de facto de uma técnica floue não sei o que pensar.
Dois caminhos se me apresentam: Tentarmos um novo empréstimo para nos pormos todos aí e fazermos face à questão do bureau in loco. Qto a mim seria a melhor solução, mas neste assunto tenho que actuar com o pensamento na mulher e miúdo. Há um ano que andamos nestas andanças. Se a levasse para a Guiné seria com uma certeza aproximada de que ela poderia permanecer lá sem ter que depois ir pª o Gh., ou regressar à Europa, enfim, andar a saltar c/ o miúdo dum lado para outro.
Nós confiávamos no direito de asilo político. Não sei se o direito de asilo confere direito ao trabalho...
Até aqui tenho agido sempre tendo sobretudo em conta os n/ interesses políticos. Em face de uma série sucessiva de «échecs» creio ser altura de pensar mto a sério na m/ família (cujos sacrifícios pela n/ causa são iguais aos meus) antes de me meter em novas aventuras, sobretudo porque não há uma urgência imediata em eu partir para aí, havendo pelo contrário uma grande urgência em eu definir a situação face à U.M.T. que nos alberga e que não sei se estará disposta a albergar-nos por + tempo. Peço pois que me dêem tempo de reflectir e que me transmitam a vossa opinião.
Quanto ao V. não percebo bem a tua situação. Eu entendo que se te fosse possível continuavas aí, pelo menos até haver possibilidade de se discutir in loco as decisões futuras. Apesar de tudo acho preferível arranjar um emprego c/ todo o prejuízo que isso acarreta para a luta e aguardar que as ligações se estabeleçam e que possamos efectivamente lutar, sem nos preocuparmos c/ mais nada. Lamento que a solidariedade se manifeste em geral tão comezinha, mas já não espero mais. Contemos connosco e reajamos em face das perspectivas.
Empreguemo-nos pois, se ao menos isso for possível, já que não podemos esperar + nada. O que se impunha agora era reunirmo-nos pª deliberar, mas eu nem tenho já dinheiro para ir daqui ao porto + próximo, nem é viável uma reunião aqui.
Em resumo
1) Parece-me ser de repetir um empréstimo para ao menos nos reunirmos e iniciar as démarches que se impõem.
2) Parece-me de aproveitar a oport. que se oferece ao Abel e família e Mário, e abrir um bureau modesto.
3) Ignoro se o V. pode ficar a trabalhar. Em caso afirmat. deve ficar.
4) Nada posso adiantar quanto a M.
5) Necessito procurar uma solução pª a família antes de a meter em novas aventuras. Arranjada uma solução juntar-me-ei a vós com… ]
9 – Acho que devemos fazer chegar também ao p.c. lusitano [Partido Comunista Português] cópias do nosso material à conf. de Túnis, bem assim como da resolução por esta adoptada em relação às colónias port. Talvez eles publiquem algo a respeito disso. Se fosse possível pedir-lhes essa ajuda de propaganda, seria mesmo bom, a meu ver.
10 – Acho que devemos tirar a copiógrafo ou mesmo imprimir, alguns milhares de exemplares da tradução em português da resolução da conf. de Túnis relativa às colónias port. Seria conveniente imprimir isso em caracter miúdo, sobre papel de pequenas dimensões e leve (papel de avião). É claro que, nestas condições, a difusão da resolução por Port. e colónias será mais fácil e custará menos despesas de correio.
11 – Penso ser conveniente mandar imprimir cartões de membro do FRAIN, os quais seriam dados aos membros da Frente residindo no exterior. Os cartões devem ter, entre o mais, um espaço em branco diante de um «Nº.» no qual se carimbaria, com numerador, o seu número respectivo. A numeração dos cartões tem entre o mais, valor estatístico: permitir-nos-á conhecer rapidamente os efectivos da Frente, ao menos em determinados países ou sectores.
Também não sei que importância a nossa opinião geral confere a coisas usadas em todo o mundo (mesmo no super-civilizado), tais como o emblema, a bandeira e o hino. Se efectivamente se presta entre nós a devida consideração por estas coisas é tempo de se começar a tratar imediatamente disso.
12 – Impõe-se ainda que se estabeleça, urgentemente, um processo de controle de cobrança de quotizações (por talões? Por selos? Por recibos?), cobrança quer no interior dos nossos países quer no exterior.
13 – O sec.-geral da UGTAN prometeu-me fazer um protesto contra o julgamento em Luanda. Hoje tenciono pedir às organizações estrangeiras aqui instaladas que publiquem igualmente protestos (sob a forma de telegramas, comunicados, etc.) contra tal julgamento. Mas o grande interesse desses protestos está na difusão entre os nossos povos do conteúdo deles. Tais protestos podem significar uma grande contribuição moral ou psicológica ao ânimo de luta dos nossos povos. Por isso, talvez seja conveniente imprimir esses protestos logo depois de termos uma pequena colecção deles.
Cumprimentos. O meu melhor abraço
ass.) V.

Cópias para L. e Abel

Carta de Viriato da Cruz (Conakry) a «Caros Amigos» [Lúcio Lara e Amílcar Cabral], com apontamentos manuscritos de Lúcio Lara

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