Carta de Ernesto Lara Filho a Lúcio Lara

Cota
0011.000.080
Tipologia
Correspondência
Impressão
Dactilografado
Suporte
Papel comum
Remetente
Ernesto Lara Filho
Destinatário
Lúcio Lara
Locais
Data
Idioma
Conservação
Bom
Imagens
8

ernesto lara filho

[R 23/3]

Minha nova morada. Importante!!!

MAISON DU BRÉSIL                
Quarto 401
"Cité Universitaire"
PARIS

Paris, aos 17 de Março de 1960

MEU CARO LÚCIO RODRIGO

    Não sei porquê, as tuas cartas dão-me uma tranquilidade de espírito, trazem-me um bem-estar, esclarecem-me de muitas coisas obscuras para mim, enfim, tornam claras certas coisas que eu não entendo. Tens-me auxiliado muito na medida em que me tens orientado, com estas cartas. Lembro-me certa vez ter escrito para Coimbra afirmando-te que não tinha gostado do «Sladlers Wells» - o «ballet» - que tinha visto no São Carlos. Ao que me respondeste com três folhas dando-me uma lição, honesta, mas dura, em que me chamavas a atenção para a minha ligeireza na apreciação e para a minha falta de cultura sobre «ballet». Lembras-te? Não foi tempo mal empregado nem o é, este que vais agora perdendo comigo. Em Paris, submerso pela avalanche de livros, de problemas que pedem discussão, afogado pela quantidade de notícias a pedirem comentário de um bom repórter, aflito com a falta de tempo, sem ninguém a quem recorrer, e principalmente, repito, espantado pela liberdade que toda a gente tem de discutir livremente as coisas, ainda não consegui demarcar uma rota, escolher um caminho que é necessário traçar na minha vida. Que fazer? Frequentar o curso de jornalismo? Voltar a Coimbra? Fazer lá o sétimo ano de Letras para seguir Direito? Voltar ao jornalismo em Angola? Voltar a ser regente agrícola em qualquer parte do Mundo? Sinto-me desagregar aos bocados e este edifício que eu tinha construído, este edifício espiritual, afinal não passava de uma cubata de adobe coberta a capim que se está a desmoronar aos poucos e poucos com o contacto deste temporal que é Paris. Tenho afinal que construir outro Ernesto sobre os alicerces tremidos do antigo. E isso, de qualquer maneira é difícil. Mesmo muito difícil, aos 27 anos de idade. De certo modo as tuas cartas têm-me ajudado. Mais: eu pensava encontrar-te em Paris, não porque realmente pensasse que cá estivesses, apenas porque precisava de ti, sentia a tua falta. Na medida em que és um tipo honesto, em que tens sido coerente contigo próprio, em que tens sacrificado tudo à procura de um ideal - passe o lugar comum. Nessa tua conduta, nessa tua rectidão, nessa tua honestidade para contigo próprio e para com os teus, procuraria eu uma orientação, uma indicação do caminho a trilhar e sinto tanta honestidade em ti, que sei que eras capaz de ir contra ti-próprio, contra a tua maneira de pensar e de ser, para me indicar o meu caminho. Que poderia ser diferente do teu. Mas deixemos isso e vamos à tua carta de 15 que aqui chegou ontem.

    Como digo acima eu contava encontrar-te em Paris, não porque contasse efectivamente contigo aqui, apenas porque necessitava de um tipo como tu. Um Amigo Honesto. Um primo. Um irmão. Para me encaminhar. É que me sinto perplexo. No meio disto tudo. Por necessitar de ti é que formulei a idéia de que te poderia encontrar em Paris. Porquê? Não sei… Talvez porque me tivesses dito um dia que vinhas frequentemente a Paris. Ou por tê-lo ouvido de alguém. Eu sei lá. Com esta explicação muito explícita, e respondi ao primeiro período da tua carta.


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Paris-Vº

segunda página

    Obrigado pelo teu aviso no segundo período da carta quanto a papéis comprometedores. Na fronteira portuguesa. De facto eu tencionava levar alguns entre os quais uma colecção do «Portugal Democrático» jornal que deves conhecer e se publica em São Paulo sob a orientação do «Adolfo Casais Monteiro». A hipótese que pões da PIDE me revistar na fronteira é uma hipótese a considerar e que eu não tinha previsto. Assim, mandarei - como me aconselhas - por via ordinária, pelo correio, os jornais e restantes papéis a mim próprio. Ainda não sofri nada por causa do nosso nome. A não ser hipotéticas censuras à correspondência que eu não posso provar nem afirmar sejam um facto. Aliás, o Orlando quando estava na Diamang queixou-se de uma carta da Alda violada - mas isso na Diamang é hábito, na Lunda é notório, e não causa espanto a ninguém. Eu confesso que tenho tido a correspondência normalmente - apenas reparo em certos atrazos em certas cartas, que, se não são providenciais, são pelo menos muito suspeitos…
    Quanto à filiação na FRAIN. Concordo com tudo o que me dizes, com as razões que expões, enfim com tudo. Aliás, era isso o que eu esperava de ti. A tua grande amizade por mim e a tua - sinceramente - honestidade, criaram as condições necessárias para seres franco comigo - como o tens sido sempre. Não me filiarei, até porque isso de facto não depende de ti, nem eu tenho condições para me filiar. Eu também pensava mais em ajudar do que em filiar-me. Em auxiliar-vos. Até que um dia, pela força das provas dadas, vocês pudessem contar comigo. Isso era mais o que eu pretendia. Também sei que não reúno as mais elementares condições. De facto, só entusiasmo não basta. Mas, diz-me, um tipo como eu que tem vivido uma vida inteira sem informação, sem saber o que se passa no resto do mundo, sem sentir o pulsar de outros, o que pode um tipo ser ou sentir, rodeado de um povo que está cheio de podridão? Que posso sentir eu se os meus pais, tios, parentes, amigos, me obrigam a pensar por modelo? Se o Governo me talhou pelo seu casaco? Lembra-te que nasci dentro do regime de ditadura e não conheci outro país que não fosse Portugal. E Angola, vamos lá. E isso, esse contacto constante, essa vida em comum, que tipo poderia ter formado? Acho que um tipo como tu é excepção. De facto só com muito pulso um tipo se pode safar da estagnação portuguesa. Tenho aprendido mais nesta semana de Paris do que em toda a minha vida. Imagina tu comprei o «Panafricanismo» da colecção «Qui sais je?» e que é escrito por um tipo chamado Philippe Decraene. E li coisas que não sabia. Estou a lê-lo - melhor a estudá-lo. Eu não sabia por exemplo, verdades, factos essenciais como este: O que o Pan-Africanismo? Como nasceu? Quem é Sekou-Touré? O NKrumah? Que papel desempenham na luta pela independência de África? O mais elementar «ABC» da África, eu desconhecia-o - 1º) Porque estas coisas são cortadas pela Censura em Portugal. 2º) Porque há um desconhecimento total, das coisas africanas, até na própria Angola.
    Lá, fala-se vagamente no Sekou Touré, neste, naquele, no Ghana, e mais nada. Lembro-me até que a notícia da Independência da Guiné foi cortada em Angola.


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terceira página
    Aliás, eu leio precisamente isto escrito no tal livro: «Dans la préface de ce livre, (Pan Africanism or Communism? - de George Padmore), il circonscrit le mouvement panafricain comme visant "à realiser le gouvernement des Àfricains par des Africains, pour les Africains, en respectant les minorités raciales et religieuses qui désirent vivre en Afrique avec la majorité noire».
    Isto foi mais ou menos aquilo que tu me disseste: Que na Angola do Futuro - que é como quem diz na África do futuro - eu não tenho o meu lugar, aliás, como todos nós, os brancos, que quizermos ficar. Ou não é assim?
    Mas isto tudo - livros, conferências, exposições, cinemas e jornais sem censura, me deixam afobado e sem dormir o suficiente, sem poder raciocinar com clareza. Continuando, transcrevo da tua carta:
    Lúcio - Acontece porém que tu não preenches as mais elementares condições de admissão, dado que o teu entusiasmo sincero em lutar não é suficiente. Algo mais se exige a quem queira lutar ao nosso lado pela libertação de Angola: é que a sua posição seja de Angolano seja inequívoca (aliás a FRAIN não é movimento só de angolanos) isto é, que de modo algum haja uma identificação c/ o povo português. Não estas, meu caro, nessas condições. Estou a falar-te francamente pois isso é preciso para que nos expliquemos, e para que a tua boa vontade não seja enganada.
    Ernesto - Absolutamente de acordo. Porém, a posição intelectual que tenho, que tomo na Carta Aberta, é a posição de português a que sou forçado pelas circunstâncias. De outro modo:
        1º - Não me publicavam a "Carta Aberta". Assim, fui dizendo algumas verdades.
        2º - Perseguiam-me por processos directos ou indirectos. Tu bem sabes quais são.
        3º - A minha carta - que teve uma primeira, uma segundo e uma terceira tiragem, - não cairia tão bem até nos meios afectos ao próprio regime que sentem que o barco está podre e em vias de se afundar.
        4º - A carta aberta, redigida da maneira que o foi, permitiu a publicação da terceira, digo da segunda, em pleno Carnaval, que é nativista, nativista, nacionalista, nacionalista, mais do que o têm sido até aqui as próprias atitudes dos próprios africanos. Não a tenho aqui para ta mandar. Ela saiu depois de cortada pela Censura. Autorizada por um dos membros, foi ao Geral, houve atrapalhação nos meios do Governo e como que por milagre ela saiu. Mas com a condição expressa de eu não voltar a publicar mais nenhuma… Aqui tens.

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        5º - Eu sou branco. Meu pai é branco. Um colono, ainda por cima. Minha família - que é a tua - idem. Como fugir a essa pressão? Não são eles afinal que me dão de comer? Que me vestem? Que me amparam? Que me auxiliam? Vê bem, Lúcio.

    A «Carta aos Chefes de Posto» ou como lhes queiras chamar, também tem uma referência indirecta que não soubeste ler.

        1º - Excluo da carta os chefes de Posto formados pela Escola Superior Colonial em Lisboa. Os que vão para Angola enriquecer e que pensam que isso é só bater nos negros, socar os pretos, contratar pessoal, etc etc - e receber chorudos "mata-bichos" pelos contratados - 2.000$00 por cabeça.
        2º Elogio os naturais - como tu e eu - que conhecendo bem a política indígena os defendem, os amparam, os procuram orientar na agricultura, enfim, com as míseras possibilidades ao seu alcance lhes dão toda a assistência que é possível dar, desde o ensino, à medicina - assistência.
        Eu próprio aprendi a dar injecções em África para as dar aos pretos da minha área que não tinham assistência médica. E não sei se salvei alguns. Apenas que me deram muitas galinhas de presente apenas por eu lhes levar para os quilombos distantes e trazer dos quimbos distantes no Jeep dos serviços, os filhos, os parentes, as mulheres doentes ou que vinham do hospital.

    Eu tento evoluir, Lúcio, mas é difícil, sozinho, e em Portugal. Evolução existe, sim, mas num conjunto homogéneo. Num grupo. Eu sozinho acabo por me distrair com os desafios de futebol - em Malange tinha a mais fabulosa equipa de infantis do futebol angolano. Só havia um branco no grupo e por sinal o mais indisciplinado. Quando os pretendi apresentar numa tarde desportiva - e toda a Malange andava maravilhada com eles, assistia aos treinos que eu orientava, enfim, era mais o público aos treinos dos meus infantis que a alguns jogos de honras do Campeonato Distrital - quando os pretendi apresentar, fui proibido, porque a maioria deles não tinham cartão de identidade. Porque não sabiam ler nem escrever. Por falta de tempo, não os consegui ensinar a ler e escrever. Há no entanto um - era defesa, alto, preto, forte - que se deve lembrar de mim. Como sabia ler e escrever, pediu-me um emprego. Consegui-lho na tipografia do "Angola Norte" em Malange. Escreveu-me para Lisboa há dias. Dizia na sua carta que de 25$00 diários que tinha entrado a ganhar, para a Tipografia, tinha sido aumentado para 30$00. Eu sei que é uma ninharia. Mas ele era pago à razão de 10$00 diários - secos, numa oficina, quando o conheci…

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atenção - esta é a quinta página

    Distraio-me com isso e outras coisas. Futebol e outras coisas. Mas que pode um tipo fazer pelo semelhante em Angola? Pouco mais do que nada. Eu tenho efectivamente - aparentemente aliás, é melhor - a posição do filho de colono. Mas tenho essa posição - porque não posso ter outra. Se eu disser a alguém em Angola que sou nacionalista, que defendo o panafricanismo, que Angola tem se ser dos africanos, matam-me. Esfolam-me. Penduram-me. Embora eu pressinta, que esse é o futuro de Angola. da minha terra. Da nossa terra. Por uma evolução natural. O "slogan" África para os Africanos, está na linha das minhas melhores aspirações. Mesmo que um dia eu venha a ser expulso de Angola. Do que não gostaria certamente. Mas é a lei da vida. Quem tem sido tão perseguido, violentado, quem tanto tem sofrido do opressor branco, só pode ter uma reacção natural, humana. Que é "que com ferros mata…"
    Eis o que penso Lúcio e o que não posso dizer em Portugal. Que tenho de calar porque - honra me seja e confesso a cobardia - tenho medo das prisões, da PIDE, do opróbrio sobre o nome, da família, de todos, o raio…
    Eis o que penso. Mas que não posso dizer porque a Censura não deixa. E como acho isso útil, vou escrevendo algumas verdades pelos ínvios caminhos dum suposto portuguesismo que em mim não passa de disfarce para combater pela independência de Angola. E posso dizer-te: Seremos independentes seja como for nos próximos dez anos. Tem de ser. Eu quero viver, para ver Angola independente. Seja com que for, como for, contra quem for. Percebes?
    Lançando o veneno nos espíritos com aquelas cartas abertas, eu presumo que terei lançado à confusão. Que chamei a atenção paras as entranhas. Que lamentei o atrazo do ensino. Que defendi as populações nativas - que são a quem pertence Angola. Falando pela voz dos colonos? Está bem. Mas que outro processo tinha eu de dizer aquilo? Só encontrei aquele. E acho que atingi o ponto que desejava atingir. Ou não? Dizes que a evolução não é coisa de um dia. Sim, eu penso evoluir muito. Sou um analfabeto ao pé dos grandes africanos que estão a erguer pedra a pedra esse monumento que são os Estados Unidos da África Negra. Monumento de idealismo que um dia, mais tarde ou mais cedo terá de ser concretizado. Sou um analfabeto não porque o tenha querido ser. De certo modo estou como as populações negras de Angola. Não sei ler porque não me ensinaram, nem me deixaram aprender. Que tem feito o Governo Português pelas populações indígenas de Angola e Moçambique? Nada. Como posso eu querer saber do que se passa no Mundo se tenho vivido sempre em Portugal e nada de nada entra lá que me possa esclarecer? Como se processa o movimento Pan Africano? Que razões levam os dirigentes africanos a exacerbarem-se contra Portugal? Nada disso é publicado em Portugal e em Angola, sabe-lo bem. Como poderia eu então escolher, procurar, adquirir uma consciência de africano que afinal sou? Se eu te disser que ainda me causam impressão - e já cá estou há quase duas semanas… - estas linda loiras abraçando musculosos negros nas cadeiras dos cafés de Paris… Isto não se deverá à única formação que eu tive em Angola? Sim, pela força da pressão do meio-ambiente sobre mim? Eu, embora tente dominar-me, ainda sinto como que… bom, nem

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sei como cheguei a este extremo de te confessar isto, mas é preciso para que sintas verdadeiramente como o meu alicerce, o meu edifício está abalado…
    Sim, eu sei que ainda não sei para quem hei-de escrever. Isso é uma das grandes verdades da tua carta. Mas se Angola, se em Angola, quem lê o jornal é quem sabe ler e se quem sabe ler é o branco, o mestiço e uma minoria de negros, para quem é que eu hei-de escrever? Colocas-me numa posição difícil, embora eu te dê inteira razão. Diz-me: Primeiro não há que alimentar convenientemente o negro africano? Depois que tratá-lo? Depois vesti-lo? Educá-lo? Etc Etc. Nós, os portugueses - como eu tenho no passaporte - nada temos feito por eles. Então vamos deixá-los à sua sorte entregues. Achas isso bem? Quanto a mim que aprendi a ler e escrever, que pude vir a Paris, que tirei um curso, que contactei com algo daquilo que vale a pena na vida, eu posso ser dispensado da tarefa que tu e outros vão lançar aos ombros, na maioria sem conhecer bem as condições locais, o terreno, a vida, o clima, etc etc? Eu não seria um bom elemento? Eu, de facto não me considero português. Sou angolano. Mas vinte sete anos de idéias fixas, de notas do dia da Emissora Nacional, de matraquear nos ouvidos, de ruas Dr. Salazar, de chafarizes como melhoramentos, de complicações, o raio, eu dificilmente me vou libertar agora do colete. Mas hei-de de consegui-lo. Embora isso desequilibre o meu estado de espírito emocional, embora isso seja um safanão em todas as idéias, firmes, que eu formulara até aqui. Para mim, Lúcio, o meu edifício, veio a Paris acabar de desmoronar-se. Hoje penso em termos africanos. E para isso só me resta uma coisa. retirar-me para os bastidores. E deixar correr o marfim. Ou não?
    A carta é um pouco confusa, mas não consigo dizer-te por carta aquilo que te gostaria de dizer numa noite de conversa amena. Sim, porque é impossível transmitir-te a verdade que te queria transmitir. Desculpa-me e procura ajudar-me.
    Chego a Paris aos 27 anos, com um atrazo de um decénio. Devia cá ter vindo aos 17. Completamente arrazado física e espiritualmente, procuro alguém, um amigo, uma idéia que justifique o facto de eu andar cá por cima da terra. E até tu que tiras a única idéia útil que eu poderia servir. Repara que eu assisti, dia a dia, semana a semana, mês a mês, ano a ano, a todas as ignomínias que em nome do regime paternalista português se praticam em Angola e Moçambique. Na Baixa de Cassange, tirei fotografias aos negros que andavam a apanhar à mão as lagartas do algodão, por ordem da Companhia Concessionária que assim poupava o dinheiro do insecticida. 200 lagartas por indígena e por dia de trabalho. Na Cela vi à entrada do Posto um prêto com uma pedra à cabeça. Que estás a fazer com a pedra na cabeça (a pedra era enorme e o preto tinha sido rapado) perguntei eu? Respondeu-me o cipaio - é castigo do Sô Chefe. O preto roubara uma galinha e o Chefe punha-o há uma semana todos os dias assim à entrada do posto. Era doloroso para todos nós ver aquilo. Acabei por atirar com a pedra ao chão e tive uma grande questão com o Chefe de Posto. O preto já tinha uma chaga na cabeça e isso foi o que me safou perante o Administrador, senão ainda era capaz de ter um processo às costas. na Machava em Moçambique tivemos um furo. Depois o macaco não funcionava. Um preto

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passou na estrada. Anda cá ajudar - disse-lhe eu. Quanto me dás? perguntou? Dou-te 20$00. Veio e ajudou. Depois disse-lhe que não era, não tinha sido bonito aquela atitude de perguntar primeiro quanto eu lhe dava. Ele explicou: É que uma vez, aqui neste mesmo sítio ajudei um branco a desenterrar o carro, depois quando pedi "matabicho" deu "porrada" na gente…
    Eu assisti a coisas destas e fui vendo, contactando, trabalhando, conhecendo Angola de lés-a-lés. E digo-te Lúcio, desse tempo não resta nada senão um travo amargo, de sabor acre na boca, uma vontade de não voltar a Angola, pelo menos enquanto as coisas se mantiverem como estão. Porque sinto, acho que posso fazer mais por ela desta plataforma europeia que é Paris do que indo para lá ser perseguido pelos engenheiros agrónomos - ah! O Lara? Esse tipo é doido… - pelos administradores - ah! O Lara? Imaginem que queria fazer um Colonato Indígena no Duque de Bragança. - e até pelos Governadores - ah! O Lara? Imaginem que informou aquele processo de concessão de terreno (100) hectares que estava na gaveta da Repartição há dois anos, favoravelmente, dando o parecer de que a terra devia ser entregue ao Domingos, aquele sacana negro da Missão…
    Olha Lúcio, eu gostaria muito de falar contigo. Muito. Tanto que tu nem podes calcular. Ou melhor, podes. Aliás tu o dizes na tua carta - "arrepelo-me todos de não podermos fazer os dois um serão em que os motivos desta carta pudessem ser equacionados e discutidos"…
    Lúcio, contento-me com o ajudar-vos. Contento-me em vos auxiliar em tudo aquilo que vocês - os bem intencionados - quizerem. E contem comigo. Sempre. E qualquer circunstância. De dentro para fora, eu poderia ir-vos abrindo caminho. Se o querem, se assim o quizerem, eu estou convosco, embora não possa ser como eu queria - inteiramente. Fico na colaboração. Que desejo seja decisiva para a consecução de todos os vossos nobres objectivos. Que um dia te lembres de mim, vendo-me sempre com os mesmos olhos com que te habituaste a ver-me na Fazenda Aurora. Um dia - eu sinto-o - tu me darás a carta de condução, como me deste a de troley na Aurora, de condução dos nossos problemas, dos nossos sonhos que ao fim e ao cabo são comuns.
    A Argélia e Angola? Sempre pensei que o movimento para a emancipação de Portugal da ditadura Salazarista teria que partir de Angola se os portugueses quisessem que ela se tornasse uma espécie de Brasil. Eu penso e escrevo muitíssimo influenciado pelos brasileiros, Lúcio. E porquê? Porque uma comunidade de raças, de culturas, era de esperar ainda, um novo Brasil, em Angola. E porquê essa auto-determinação africana? Porquê a volta à cultura negro-africanas? Elas não estarão ultrapassadas? Responde-me a estes quesitos.
    Já tinha lido os artigos do «Le Monde» sobre Angola. Revelam muita observação. Eu no entanto sou capaz de ser mais objectivo que aquela senhora.  Que dizer mais verdades. Capaz de ser mais claro. Ela fica-se nas meias tintas e vamos lá: Em França não há liberdade?
    Tenho lido todos os dias o «Le Monde». Maravilhosamente equilibrado, sério, o jornalismo que aqui se faz. O «Le Monde» é de facto um exemplo. Eu gostaria um dia de conhecer a América do Sul. É o que me falta para poder finalmente escolher um caminho. Que suponho irá dar à mesma solução que tu preconizas - a Independência de Angola. Mas eu preferia uma Independência, uma Nação à moda do Brasil. Uma cópia do Brasil. E tu preferes uma África

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para os Africanos. Com um lugar - de favor, subentenda-se - para os angolanos brancos como eu, como o meu Pai que fala perfeitamente o quimbundo, que compreende os negros e não bate neles, enfim, para o Teu Pai que também os compreendia de certa maneira.
    Eu sinto-me como que despedido do trabalho, dispensado de colaborar posto à margem, enfim, um indesejável. E eu não posso resistir à idéia de que vocês dispensam muito do melhor material humano que Angola tem que são aqueles que sentem como vocês, que querem o que vocês querem, apenas por outros caminhos. Não tenho idéias paternalistas. Sou mais é pela assimilação e neste caso, os negros teriam sempre predomínio pois são quatro milhões em Angola para apenas 200.000 brancos. Sou pelo imediato ensino da camada negra. Pela imediata independência. Pelo imediato acesso aos postos de Governo dos leaders africanos mais capazes. Sou por uma Angola, afinal, igual à tua. Porque não hei-de tentar integrar-me num grupo, num conjunto onde a união certamente fará a força? Não andaremos a dispersar esforços? Eu não valho nada? Eu não posso ser útil? Eu serei dispensado?
    Não me contento com isso e numa posição de jornalista, de franco-atirador que me será funesta mais tarde ou mais cedo, vou andando aos tombos. Era por isso que te procurava em Paris. Que sonhava encontrar-te. Para me orientares este turbilhão de idéias que se acavalam, misturam no meu cansado cérebro. Hoje em dia, considero de um plano de igualdade, sem ódios de raças, os negros de Angola. Sei, porém, por experiência própria que ainda não estamos preparados para a auto-determinação. Aos teus quesitos eu respondo:
    
    1º De facto, ainda, não estou preparado para saltar a barreira.
    2º Concordo que a luta vai ser dura. Mas sozinho, valerá a pena lutar?
    3º Que posso contar contigo, isso eu já sabia. Mas até que ponto?
    
    De resto, como tu bem dizes, eu tenho colaborado convosco, e agora de fora. Isto já é algo positivo. Não achas? Continuarei a colaborar. Para tudo o que vocês queiram. Se achas que em Angola eu serei mais útil, então, ir-me-hei embora. Lá de facto é que é o campo de trabalho, de batalha. Quanto ao rever a minha posição actual, isso estou a tentar fazê-lo. Estou num quarto às escuras, a tatear, a tatear. À procura da luz eléctrica. Vou terminar e fico inquieto, espiritualmente, como antes de vir para Paris. Mas apenas mais esclarecido. Pedes a morada do Brotas: Aí vai: António BROTAS 33 - Rue des Écoles - G. H. M. - q.37 - Paris - Vº.
    A Sarah tem sido uma excelente companhia. Dei-lhe o teu cartão. Tem-me ajudado. Comunicar-te-ei a morada quando mudar para a "Cité". Diz-me em que é que te posso ser útil. Pede-me o que quiseres, desde que não seja dinheiro. A tia Clementina deu uma ordem à tia Quéca de pagamento de todas as despezas que eu tivesse contigo - não percebi… Mas fica aqui para tua orientação. Pede portanto o que quizeres em livros, jornais, etc. Tenho continuado a enviar jornais. Seguem dois recortes que peço leias e comentes. São importantes. Manda-me isso da Conferência de Tunis. Á laia de piada - queres uma partidinha de bilhar por correspondência? depois comentarei a tua resposta à m/ carta aberta. desculpa o desequilíbrio desta carta. Abraça-te o Ernesto.

Carta de Ernesto Lara Filho (Paris) a Lúcio Lara (Marrocos).

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