Carta de Ernesto Lara Filho a «Meu caro Lúcio»

Cota
0011.000.091
Tipologia
Correspondência
Impressão
Dactilografado
Suporte
Papel comum
Remetente
Ernesto Lara Filho
Destinatário
Lúcio Lara
Locais
Data
Idioma
Conservação
Bom
Imagens
3

ernesto lara filho
"Maison du Brésil"
Quarto 401
"Cité Universitaire"
PARIS

[R 28/3]

Paris, aos 23 de Março de 1960

MEU CARO LÚCIO

    Dua slinhas só para te enviar o seguinte: um recorte da "miserável" imprensa de Lisboa, uma cópia da carta que o Arlindo Vicente enviou ao Presidente do Concelho - soubeste o que aconteceu, não soubeste? e devolver-te a tua estupenda lição sobre a minha primeira Carta Aberta. Quero no entanto sobre esse assunto dizer-te o seguinte:
    "A carta aberta é um primeiro passo para qualquer coisa que eu mesmo não sei o que é. Eu sinto apenas que estou a transmitir o sentimento geral de Angola. O jornalista, como tu sabes, tem sempre notícias a transmitir. De seus amigos, de seus lugares, de si próprio. Quando fala, que é como quem diz, quando escreve, o importante é colocar, na aparente gratuidade dessas notícias, um sentido capaz de permanência, uma mensagem que consiga atingir o ponto em que todos os homens se unem, a essência humana das pessoas, onde o tempo não tem presença. E o importante, para o jornalista, é realizar essa tarefa para um dia determinado e, muitas vezes, para um espaço previsto sem deixar que a pressão, a que se submete, o leve ao caminho da facilidade de estilo, que corresponde, geralmente, a uma leviandade de sentido. A missão de um repórter como eu, a minha função, a minha - vamos lá - profissão é transmitir uma realidade a um grupo de pessoas, dando-lhes conta do que vi, do que ouvi, o que sinto. No ponto intermediário do trabalho, o repórter precisa de já ter a sua linguagem. É aí que o «ABC» pressentindo qualquer coisa em mim - e tu mesmo te referes ao facto - diz que eu tenho uma maneira própria de dizer as coisas "à David Nasser".
    Dizes na tua carta: Melhor: Chamemos-lhe "na tua análise à minha primeira carta aberta. Que não deixa de ser uma excelente autópsia…"
    "A tua carta está vigorosa. Não posso dizer que te acho parecido com o Nasser, pois há muito ano (desde os tempos de Coimbra) não leio o Cruzeiro. Mas o estilo está bom, se bem que ainda com certas falhas. Está mais sensacional do que profundo, e eu tenho a impressão que ele ganharia mais se o dirigisses neste último estilo. E depois, citas o exemplo do "económicos e políticos": Políticos e económicos. E dizes que é muito vago, aquilo.
    Ora meu caro Lúcio, quando eu digo problemas políticos e económicos, económicos e políticos, toda a gente sabe que eu quero dizer: Angola está num estágio de sub-desenvolvimento. Sub-nutrição, analfabetismo, economia dirigida por Lisboa - suponho que o Brasil apesar de todo o seu nacionalismo está dirigido pela Wall Street - e portanto quando comparo Angola com o Brasil, refiro-me quase que claramente, aos nossos problemas comuns, que afinal são comuns na América do Sul e na África ao Sul do Saara. Esse quadro de sub-desenvolvimento económico e de grande atrazo cultural foi o único considerado por mim, quando quis transmitir qualquer coisa e quando comparei com o Brasil. Claro, que não utilizei as armas tôdas que possuo. A segunda carta aberta, que junto e peço comentes, vai muito mais longe. Vai muitíssimo mais longe. É sempre o mesmo jogo. Tocando a corda sentimental - colonos, portugueses - vou dizendo o que quero e o que devo dizer. Vou falando nos Muceques - coisa de que ninguém pode falar em Angola - vou falando noutras coisas. Lê. E depois diz-me com franqueza, se não estou a fazer jornalismo sério, válido - o mais sério e o mais válido de todo o território português sob a "pata" do Antoninho de São Bento.
    Mais adiante afirmas:
    "No conjunto a coisa passa, porque ao fim e ao cabo tu atiras com umas certas verdades à cara do Senhor e até vais ao ponto de lhe pedir que sinta a suavidade das estradas de Angola. Mas sendo um artigo para o grande público, e sendo precisamente a tua intenção fazeres jornalismo honesto e independente, há que utilizar o jornalismo como meio de educação do público, coisa que em geral aí não se faz…"
    Sim, no conjunto a coisa passa e eu aproveito escrever aquilo que anda no ânimo da maioria. As estradas são um problema do preto, do branco e do mulato. E quem diz estradas diz vias de comunicação. e quem diz vias de comunicação, diz dum modo geral a economia de Angola. O grande público, Lúcio, o que compra o jornal qual é? Posso esquematizá-lo nesta proporção: 62% brancos. 15% mestiços. 33% pretos. E então, não estou a escrever para uma camada definida? E o jornalismo que estou a fazer não é um jornalismo a sério? Não tem estilo? Não tem coragem? Não tem verdade?
    Quanto às taxas de desconto, quando a gente não é um economista e não quer escrever asneiras - o melhor é não mexer nisso. Mortalidade? Ensino? Eu digo claramente: "Há o problema do ensino". Eu não posso encher o jornal, o artigo que é panfletário, que vai viver um dia, com números, cifras, discussão de problemas. O que eu tenho de escrever é a realidade do dia. No momento da chegada de um novo Sexa. Quando já ninguém acreditava nos novos Governadores Gerais.
    (E aqui um aparte: arrepelo-me de não poder falar contigo. Que chatice "amandar" para o papel coisas que a gente poderia fixar melhor, falando. Tanto queria discutir contigo…)
    Investigação por conta própria? Que é que eu estou a fazer em Paris? Seriedade? Honestidade? Quem as tem mais do que eu ou tu? O "Código do Trabalho Indígena? Lá iremos, lá iremos… A carta aberta não tem profundidade, Lúcio. Mas a segunda, a segunda, juro-te, posso erguê-la ao pé dos grandes escritores do nosso tempo que escreveram sem o "ferrête" da censura a "aporrinhar-lhes" as costas. Lúcio, peço-te que leias a segunda carta aberta. E que vejas nela, tudo o que eu quiz dizer e que não ficou escrito. Que ficou nas entrelinhas. E repara que o jornal me tira pela primeira vez o apoio. Quer dizer, diz ela que esta não é a orientação do jornal. Mas que este trabalho pertence ao panorama destas terras e destas gentes… etc etc. Lê o fundo do jornal que acompanha a carta e vê a malícia do último período. Género tirarem-se da chuva. E eu, fico sozinho, no meio da rua, a apanhá-la toda.
    Em Portugal há uma total ignorância pelos problemas coloniais. Eu não escrevo para Portugal, Lúcio. Eu escrevo para Angola. Para a minha, para a tua, a do "Cauínha", a do Miáu. Para a Angola do Manuel agora feito Sóba na Fazenda Aurora. Todos esses - os que sabem ler, dentre esses os que sabem ler, vão ler com carinho a minha Carta Aberta. Eu sei-o. E digo-te que é assim, porque um dia fui a um baile de Muceque e um preto que eu não conhecia, que nunca tinha visto, me pagou um copo de tinto dizendo que tinha lido um artigo meu sobre o Padre Guimarães e que tinha uma grande admiração por mim. E depois, Lúcio, rapando do copo, cheio de um vinho tinto extremamente ordinário disse estas palavras: textualmente as reproduzo:
    "Je beuve du vin rouge à votre santé…"
    Tinha estado no Congo. Tinha vindo passar férias a Angola. Ia voltar. Isto foi em Malange Lúcio.
    Todos os que sabem ler, lêem. E entre os negros, os tais 99% de analfabetos, Lúcio, há muitos que aprendem por si, pelo seu esforço, que vão para o Congo, África do Sul, Rodésia, ganhar dinheiro e aí se preparam para chegar a Angola e compreender aquilo que o repórter escreve. O "seu" repórter. Porque eu sou de todos e não pertenço a ninguém. Quando o público esgotou o «ABC» das mãos dos ardinas em Luanda - duas edições- duas tiragens no primeiro dia e outras duas na segunda carta aberta - estava a fazer-me uma justiça. E quando pagou o «ABC» a 20$00 estava a fazer outra justiça. Isto foi aquilo que eu soube cá de tão longe. E mais posso dizer-te. As emissoras retransmitiram. As emissoras falaram. Porque é que o êxito foi assim tão grande? Talvez porque eu tenha escrito para a tal camada que me acusas de não defender. Para o negro, nosso maior património. Mas não caminho contigo no sentido da tal independência política dele. No estado quase bárbaro em que está o negro não pode conviver pacificamente com o branco, se lhe derem independência. Primeiro educação, cultura, ensino, alimento. Depois sim. Independência política. Não achas?
    Outra coisa: Não acredito na seriedade do Adriano Moreira. Não acredito. Ele foi agora nomeado Secretário ou Sub-secretário do Ministério do Ultramar. Quero que fiques ciente disto - o tipo é como os outros. Quando eu escrevi: Dará acesso aos naturais de Angola? Eu referia-me particularmente aos negros… Mas o Governador Geral "driblou-me". E eu não estava em condições de o desarmar. Eu tinha que ir nas ondas do mestre.
    Mas fazes as pazes comigo - perdoas tudo e até me felicitas quando terminas com estas palavras:    
    "Quanto ao bigode na "Mona Lisa" concordemos que está bem metido... Resumindo a carta tem aspectos óptimos pelo que ela tem irreverência há muito arredada do jornalismo português. Quanto a mim (abstraindo o aspecto político, com que, como te expuz, não concordo,) ela necessitava de ser um pouco mais profunda para ser um excelente trabalho."
    De qualquer modo isto é um elogio. Como tal o tomo. E continuarei a procurar o teu conselho, a tua orientação que de certo modo me é utilíssima.
    Muitíssimo, utilíssissíssssímos.
    Entendes?
    Um abraço. Escreve "Express" para Paris, pois devo ir embora a 5 de Abril para Lisboa. Não tenho posses para me aguentar por aqui. Vou para Coimbra tentar o sétimo ano. Fixe? Escreve para Ernesto Lara Filho - ao cuidado de Diamantino Rodrigues - Pensão Jardim - Coimbra. Fixe? É um amigalhaço, agrimensor dos tempos de Angola - regencia agrícola. Que está em Direito. [Manuscrito:] Cumprimentos à Ruth. Beijos ao Paulinho. Um abraço do primo amigo.
        Ernesto Lara

Carta de Ernesto Lara Filho (Paris) a Lúcio Lara (Casablanca).

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