Carta de Ernesto Lara Filho a Lúcio Lara

Cota
0011.000.099
Tipologia
Correspondência
Impressão
Dactilografado
Suporte
Papel comum
Remetente
Ernesto Lara Filho
Destinatário
Lúcio Lara
Locais
Data
Idioma
Conservação
Bom
Imagens
10
Observações

Esta carta faz referência a umas fotografias que estão neste portal, com as cotas «1007.003».

Ernesto Lara Filho
“Maison du Brésil”
Quarto 401
CITÉ UNIVERSITAIRE”
PARIS

Paris, aos 29 de Março de 1960

Meu Caro Lúcio
    Recebi a tua carta - a tua longa carta, de 28, Express, - hoje pela manhã. E são 11 horas da noite e enquanto o assunto está quente, aqui tens a responder-me. Posso, de Paris, espraiar-me em cartas longas pouco antes de me ir embora - devo seguir a 1 ou 2 de Abril para Lisboa, - responder-te circunstanciadamente à tua carta.
    Mas primeiro que tudo e sinceramente, deixa-me agradecer-te as tuas últimas cartas. Obrigado, Lúcio. Tem-me sido úteis. Muito úteis, na medida em que constituem uma orientação para mim. Claro, eu estou “apardalado” com Paris. Mas já me vou recuperando. E principalmente, deste terraço do mundo, vejo agora o tamanho do quintal dos fundos português. De facto, em Portugal, vivemos no olho do cú do mundo, perdoa-me a expressão. É ainda sob o “impacto” causado pela tua carta, sob o efeito do impacto, queria eu dizer, que te escrevo. Seria melhor deixar passar uns dias para reflectir com clareza. Mas como vou para Lisboa em breve, é melhor escrever-te já. Primeiro que tudo acuso recepção da carta, agradeço-ta e depois acuso também a recepção das fotografias e dos recortes. Farei muita gente boa, lê-los em Portugal. Um tipo amigo fica encarregado de me enviar pelo correio a papelada comprometedora. Por causa da Alfândega em Portugal. E por fotografias. Vão quatro que te ofereço. De que se trata? Duma reportagem que em tempos eu quiz fazer e não me deixaram, sobre “As condições em que o indígena faz a cultura da mandioca”. Condições essas que são primitivíssimas. Em que nunca surge o auxílio de serviços técnicos. Aí vão. Eu vou descrever o que representam para tua orientação caso queiras aproveitar o assunto. Pelo menos não cairão no olvido.
    Foto Nº1 - A mandioca no terreno. Cheia de viroses”, mandiocas degeneradíssimas, o indígena continua a multiplicar, a plantar troncos de plantas doentes. A consequência são baixíssimas produções por hectare. Depois, quando essa mandioca está prestes a ser colhida:
    Foto Nº 2 - A mulher - é sempre ela quem faz a agricultura - ou quase sempre - com a enchada de dois cabos que tu conheces, colhe as raízes, isto é, os tubérculos. Em “quindas” e à cabeça, transporta os referidos tubérculos a distâncias incomensuráveis. Cheguei a notar 20 quilómetros. Até aos locais de fermentação. Onde haja água. Normalmente, junto a cursos de água. É um enorme esforço físico.
    Foto Nº3 - Coloca a mandioca nos “charcos” a fermentar. Esses charcos, normalmente são de águas estagnadas, doentias, sujas. É aí que fermenta, a mandioca que o indígena depois terá como base da sua alimentação.
Foto Nº4 - Nova caminhada para o pé da senzala e… secadouros. O indígena põe a mandioca a secar nesses secadouros primitivos. Repara que não custava nada ao Governo fazer uns secadouros e uns tanques de água para o efeito. Com isso conseguia duas coisas. Comercialmente - já que isso que interessa ao Governo - melhorava a qualidade da mandioca. Fisicamente - melhorava a saúde das populações. Depois de seca a mandioca - o “bombó” ou a “maquéssa” - o indígena farina no velho pilão.
Foto Nº5 - O indígena farinando, fazendo a fuba de bombó, de mandioca, que constitui a parte principal da sua alimentação nos distritos do Norte de Angola. Estas fotos foram colhidas no Duque de Bragança a 90 quilómetros de Malange. Repara na promiscuidade das galinhas com os indígenas. Tudo junto - até comendo.
Comercialização - nova caminhada até à loja mais próxima. Preço que o comerciante europeu paga ao indígena? Deixa-me rir… £50 a £70 por quilo. Calcula tu, o que é trabalhar nestas condições. E são eles - os negros quem, quase na totalidade, fazem a mandioca que Angola exporta - milhares de toneladas. É tudo. Ah! A mandioca dá a tapioca e outras coisas muito importantes, nas fábricas da Europa.
Tu sabes do que se trata. Escuso de acrescentar. Diz-me se gostaste ou se te interessam elementos desta natureza.
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    Seguem alguns recortes que separei do 2ABC”. O da edição do “Diário Popular”, digo, da Câmara da Tua Terra, é de morrer a rir. Anedótico! também, só tipos de Nova-Lisboa é que faziam uma coisa daquelas. A propósito: lembras-te das nossas discussões bairristas sobre Benguela e Nova-Lisboa? Bons tempos… Mas agora meti golo - falando em termos de futebol. Apara lá esse remate, anda. “Que largueza de vistas a da “malta” de Nova Lisboa, não achas? Onde vai o dinheiro…
    Outro recorte é sobre o calçado. Angola quer queira quer não, tem de comprar vinho e coiros à Metropolitana - Mãe. O outro é sobre a crise a sempre falada crise em que ninguém acredita - mas que existe. 41 indivíduos proibidos de exercer actividades industriais ou profissionais. Entre brancos, pretos e mulatos. Tiens? Repara bem.
    Outra coisa que assinalei num dos últimos «ABCÊS» foi este facto: Em 1959 Angola exportou para os Estados Unidos 50.000.000 quilos de café. Como os “States” importaram de África 200.000.000, a brincar, Angola foi a productora de 50.000.000, isto é, ¼ do total da exportação africana. Isto, acho eu, é importante. Pergunto: Onde foram as divisas? Os dólares? O ouro?
    Responde-me, anda, se és capaz…

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Vamos agora a entrar na tua carta. Já não estou muito espantado com isto, mas a vinda aqui desequilibrou o meu edifício espiritual.
    Quer dizer, desfez idéia firmes que eu tinha acerca de certas coisas. Uma das coisas que fiz de bem, nos últimos tempos: vir a Paris. Principalmente, jornalisticamente, esclareceu-me. Abriu-me os olhos. Sobre a Imprensa. Aprendi muitíssimas coisas novas e fiquei por saber outras tantas. Precisava de ficar cá um ano a trabalhar num «France-Soir» por exemplo. Mas largos dias têm cem anos. Outro aspecto importante: a importância, - desculpa a repetição - que se dão ou que é dada em todos os sectores da vida moderna às coias africanas. É a preocupação dominante dos termos modernos - África. Escrevem- se livros, fazem-se conferências, debate-se o problema, a questão do nosso tempo - África. Em Portugal nada se sabe desta importância que todo o Mundo dá aos acontecimentos africanos. É vulgar o Monde fazer um fundo sobre os acontecimentos africanos. O «France-Soir» de hoje rasga toda a primeira página com uma fotografia horripilante de gente ferida e morta, no chão, na África do Sul. Tudo negros, claro, mortos e feridos. E coisas assim. Reportagens oportunas, claras. Bem feitas. Sobre o “appartheid”. Vi um filme: “Came back, África”. Tecnicamente uma droga. Mas é um grande documentário, verdadeiro, sobre a vida dos negros em Joanesburgo. E a história é verdadeira. Esse filme deve ser proibido em Portugal.
    Portugal? O «Diário da Manhã»? O «Notícias»? A própria «Respública»... Bem, fazem por ir saindo… Maldita censura à Imprensa, Lúcio. Maldita!
    África e Liberdade são os dois problemas de momento no mundo inteiro. Liberdade para os povos submetidos. Para os países sem auto-determinação. E que coisas mais importantes que essas pode haver? A bomba atómica do Sahara? Agadir?
    Importante: “arranquei” um estupendo trabalho sobre o Cardeal Negro recentemente nomeado pelo Vaticano. O artigo foi para o Padre Nascimento - um padre negro, meu amigo, de Luanda - em forma de carta aberta. Publicá-lo-á o ABC? A censura deixará passar? A ver vamos…
    Entretanto continuarei a trabalhar. Ontem visitei o «L’Aurore» - oficinas e redacção. Hoje o «Le Monde». Comprei os tais dois artigos da Suzanne de Lusignan sobre Angola. Já os tinha lido, aliás. Comprei-os apenas para arquivo. Amanhã irei ao «France-Soir». Mas precisava de cá ficar. Mas não tenho dinheiro. Volto a Lisboa porque a Alda vai passar férias a Angola com o Orlando e como parte a 7 de Abril eu quero estar nessa data em Lisboa. Percebes? Depois o meu rumo é este - sétimo ano em Coimbra. Se fizer duas ou três cadeiras - até Junho tudo é possível e eu sou um tipo esperto, inteligente, graças a Deus e ainda por cima tenho presunção e acredito em mim…- depois irei a Angola fazer o resto e arrumar o sétimo ano. E arranjar uma bolsa de estudos. Percebes aonde eu quero chegar? Onde eu tenho de chegar? Com uma bolsa de estudo da Câmara de Luanda é possível que eu possa vir para Paris fazer o tal curso de jornalismo. Já tenho, do sétimo ano, Organização, com 16 valores. Falta-me Literatura, latim, Alemão, História e Filosofia. Este é o me programa de trabalhos que como vês não é nada para brincadeiras…
    Obrigado por me dares razão naquele assunto, naquele momento em que o repórter tem de agarrar a notícia do momento para a transmitir aos seus leitores. Sem poder ter a preocupação de ser profundo. De facto é um aspecto importante a ter em conta para analisar o trabalho de um repórter. E tu reconheces que menosprezaste esse pormenor. É que a maior parte das vezes, nós, os jornalistas trabalhamos contra-relógio e com espaços de prosa determinados. Quanto ao aspecto local da Imprensa portuguesa - de Portugal - Lúcio, ela não existe, pura e simplesmente. Não és da minha opinião? Conheci muitos jornalistas com quem convivi em Lisboa. Desde um tal Pintassilgo do “D. da Manhã” até ao Victor Santos de “A Bola”. Desde o Chefe da Redacção de «Réspública» - o Artur Inêz - até ao do «Século» - o Acúrcio Pereira. E posso reafirmar-te uma desilusão tão profunda quanto legítima. Ainda foi a “malta” de a “Bola” quem melhor me impressionou. Principalmente dois estudantes universitários que trabalham lá - o Carlos Pinhão e outro de cujo nome não me lembro.
    O resto, Lúcio, é duma aridez, duma falta de cultura, duma ignorância, dum temor, duma falta de garra, impressionantes. Não falo no Veiga Pereira que não conheço como jornalista. Não falo dum tal Urbano Rodrigues que escreveu um livro que me ia fazendo vomitar. Merdas. Agora do Henrique Pongetti, Rubem Braga, Paulo Silveira, Nelson Rodrigues, todos brasileiros, e que passam a vida a “baixar o páu” no Antoninho, esses leio-os a todos. E são bons, bons, bons, de verdade. Não admira. Têm liberdade. De escrever o que querem.
     Ainda bem que gostáste da 2ª Carta Aberta. Tenho de abrir clareira no pensamento para dizer certas coisas. Para passar aquela frase - minha Angola nasce na senzala, planta mandioca, viceja nos “quimbos” e cumpre contrato” as voltas que eu tive que dar… Mas não és só tu que me lês. A edição voltou a esgotar-se e eu senti que todos - pelas cartas que recebi - me compreenderam. Brancos, PRETOS e Mulatos. Da família recebi duas cartas que junto. Uma do tio Abel - que rogo devolvas para Lisboa - e outra do Meu Pai. E sei que se teu Pai fosse vivo, seria dos três irmãos o primeiro a lê-la como sempre fazia dos meus escritos. Era a conversa do almoço em tua casa. O teu pai entrava, cansado, vindo da Junta. Dos armazéns da Junta. Sentava-se junto ao rádio - o mesmo de sempre, no cantinho da sala e dizia: “Olha Zita, uma coisa do Nésto…” A tua mãe da cozinha: “Sobre quê?” e todos liam e comentavam durante o almoço. Era assim. Dos três irmãos, o teu Pai ainda era o que melhor me compreendia. Nunca ouvi dele uma censura, uma recriminação para a vida que ia levando. Sempre me deu “Umas c’rôas” quando eu andava “TÊSO” mesmo já depois de eu ser regente agrícola. Só há um reparo que tomo nota, dos que me fazes a respeito da carta. Da segunda, da do Carnaval. É quando apontas o público para quem eu devo, eu tenho obrigação de escrever. Aí tens razão. Vou modificar. Mas, como viste, o jornal, muito sorrateiramente, lavou as mãos dessa coisa… Reparaste nos “sacanas”? E eu fico sozinho a esgrimir no meio da praça com os toiros em volta, desembolados. Mas seja! Aceito a luta! Viva o Benfica! E viva este ar quixotêsco que ponho nos grandes momentos! Duma certeza porém posso eu viver. É que nunca gostei do Benfica! Daqui para o Futuro - Académica, Académica, Académica. Percebes o que eu quero dizer?
    Nesta carta aproximei-me mais dos Musseques - porque é preciso falar do assunto. Aproximei-me mais de Angola - porque é preciso. Fui mais “nativista”. Foi isto, de certeza, que me chamaram os “sacanas” do G.G. quando leram a carta. Ah! Informo-te que foi uma “bronca” As emissoras transmitiram e o jornal foi vendido a 20$00. Estou armado em “Rocha Martins” lá da favela… O que é preciso Lúcio é espírito de equipa, assistência aos treinos e muita estupidez natural… Lembras-te da frase académica?
    Desculpa eu brincar com isto. É para te alegrar, para quebrar este auto-elogio constante, permanente, que te deve “chatear”.
    Continuando: Registo que insistes (e com razão sublinhe-se) em escrever que há certas coisas que se devem evitar escrever. Embora essas coisas permitam que passem outras. Registo e nisso tens toda a razão Lúcio. A mão à palmatória.
    Tomarei cuidado em Coimbra com o falatório. Embora seja um velho feitio - é do meu Pai - este vício de dizer mal do Governo. Quanto à morada, vai escrevendo para a American Literary Agency. Depois te direi algo de Coimbra. Na American, isto é, na minha casa, a porteira faz o correio chegar às nossas mãos. É ela quem, diariamente, vê a caixa. Mas de Coimbra eu darei um jeito. Possivelmente pedir-te-ei ainda para escreveres para a Rua Aires de Campos, para a Dona Adelaide - lembras-te, a vélha? - ou outra coisa dessas. Entretanto vai escrevendo para a American Literary Agency e não te espraies em considerações. Quanto a mim continuarei a escrever para Liège. Ah! Registei os teus pedidos que enviarei logo que chegar a Lisboa. Fixe? O relatório do Banco já saíu e enviar-te-ei um. Logo que chegar a Lisboa. Conta com isso - para Liège - a partir do dia 10, isto é, entre 10 e 15 de Abril. Quanto à Caixa Postal Conacry - 800, só de Paris, se te voltar a escrever. Continuarei a enviar para Liège, repito. A propósito: Recebeste uns ABCÊS que mandei para aí, daqui de Paris? Avisa sempre que mudares de direcção.
    A tua carta para a tua Mãe lá foi. Já escrevi e mandei. Está descansado. Registo que aprecias os recortes que envio de vez em quando. Tudo quanto for apanhando enviarei. Como podes ver pelos ABC, o julgamento foi adiado - eu aliás, já o sabia.
    Quanto ao ponto da minha carta em que discordas - independência imediata - tenho de passar a concordar contigo em face das razões que aduzes. Isso de facto - as tuas razões - colocam-me o assunto sob outro prisma de observação e eu tenho de reconhecer, embora contrariado, que de facto é necessário caminharmos imediatamente para a independência política como única maneira de alcançarmos mais rapidamente a independência económica. De facto o Branco nunca mais - pelo menos em Portugal - dará educação ao negro. A teoria do Estado Novo é esta: Todo o negro formado é um nacionalista em potência. E isso de facto só se combate duma maneira. A imediata auto-determinação dos povos africanos. Mas e os “leader” Lúcio? Os “leaders”? Haverá gente que quando chegue a hora não desate a “armar” barraca? Em ti acredito. No Viriato também. Idem no Mário. Mas e o resto? Haverá gente? Haverá? Essa a minha dúvida. Porque são 4 milhões de negros em estado bárbaro, e cheios de ódio ao Branco. Em Angola. Ódio justificado, subentenda-se. Mas ódio. E o ódio é mau conselheiro.  No entanto, torço o braço e dou-te razão. Independência política imediata - como único meio de atingir rapidamente a independência económica. Como único meio de atingir esse fim.
    Três coisas me mostrou Paris. 1º - A importância de África no momento político actual e internacional. 2º - A importância da Liberdade de Imprensa, da Imprensa como orientadora da opinião, resumindo: da verdadeira imprensa. 3º - A necessidade da independência dos povos africanos, isto é, esta premente necessidade de conquistarem a auto-determinação corresponde a uma nova era, histórica no mundo. A era dos povos africanos. Será isto?
    Nesse aspecto da independência eu estava a ver o problema do tal ponto paterno, colonialista que tens apontado. Eu pensava que era idéia fixa da tua parte mas não é. É assim mesmo. De facto, sob a pata colonialista é impossível fazer o povo adquirir uma cultura, uma consciência nacional. Tem de haver primeiro que tudo libertação. E depois, o resto, virá depois. Eu estava a observar as coisas influenciado pelas notas do dia da E. nacional. De facto, desse ponto de vista, eu armo em Branco honesto, que deseja educar o Negro que é burro e só quando ele tiver cursos superiores, cultura, quando houver Doutores Nkrumahs e Sekous Tourés e Du Bois, é que o negrinho pode trepar para a independência política porque está já esclarecido, já estudou, aprendeu, contactou. Que erro, a minha posição, Lúcio. No entanto, ela foi tomada devido ao ambiente que tive à minha volta durante os principais anos da minha formação. As leituras que me deixaram fazer influiram decisivamente nesse “quiproquo”. Mas Paris desmoronou isso tudo. É uma pena, era um edifício quase pronto, de concreto. Veio o terramoto de Agadir e… construamos de novo, Lúcio, com ferramentas gastas, como diz o Kipling no “If”. Vou construir tudo de novo. E se amanhã, dentro de 10, 15, 20 anos, verificar que ando no caminho errado, que o novo edifício que eu construir tem que ser deitado abaixo, voltarei a evoluir; a modernizar, a actualizar tudo. E ainda bem, que, apesar de estares longe, eu pude contactar com alguém que me poupe esclarecer. A maior parte dos tipos como eu, formados estes anos em Angola, Lúcio, convivendo com negros, mulatos, tentando entendê-los têm as mesmíssimas reacções que eu tive em Paris. Percebes? Mas eu vou evoluindo. Vou-me modificando. E tu tens ajudado muitíssimo. Agradeço-to. Penhoradamente.
    De facto, o ponto de vista pessoal sobre o assunto - era errado. Modifiquei-o. O teu está certo.
    Moradas de tipos de Angola? Junto algumas que aqui tenho e Paris. Mas cuidado com os remetes. Percebes-me? Aí vai o que pedes. O que poude arranjar. Entretanto de Lisboa como disse acima - mandarei mais moradas e mandarei também as coisas - livros - que pedes.
    Seguem os sêlos que pediste nas costas para reenviar - nas costas do teu envelope.
    Ah! Está aqui um tipo - o Carlos Wanderley, jornalista da «Última Hora» [manuscrito: do Brasil] que ficou “doido” com as coisas que lhe contei de Angola. Vai escrever sobre o assunto. Claro dei-lhe os elementos de produção. Contei-lhe umas coisas do algodão. O tipo ficou “brabo”. Vai escrever. Vamos ver o que ele faz. Parece-me sério e camarada. Tem sido a minha companhia em Paris e temos enfiado os mesmos barrêtes. Nem sequer fazia idéia de onde estava Angola. De que lado ficava, no mapa de África. Claro, estava, vivamente interessado ficou, depois de conversar comigo. Quanto ao Brotas esse esteve a conversar comigo 4 horas depois que lhe disse que ele tinha, digo que te tinha mandado a morada dele. Mostrou-me então o processo que lhe moveu a PIDE. Fiquei desconsolado. Um tipo inteligente a quem cortam as pernas assim sem mais nem menos…
    O livro do Philippe Decraene, de facto ajudou-me. Não como a formação como tu dizes. Sim, como informação. Pois tu não vês que estas coisas não chegam a Portugal?
    O Zé Augusto? Bem o tipo não tem culpa. É um produto do meio em que tem sido criado. O Zé e muitos brancos de Angola, podes ter a certeza - e a minha posição não era até vir a Paris, muito longínqua da deles, embora fosse mais moderada… - agirão como qualquer “afrikander” no caso de um futuro conflito. Mesmo os que como eu, iam aos Musseques, dançavam nas rebitas e protegiam e ajudavam os tipógrafos negros lá dos jornais, mesmo esses, reagiram como eu perante as loiras e os negros musulosos do “Dupont-Latin”. Embora com a vinda a Paris eu me tenha curado disso. Mas tenho de rever muitas coisas dentro da minha estrutura mental, tenho de desmantelar tudo e refazer de novo. Porque tinha uma série de quistos como esse, encastelados no cérebro. Eu era um tipo completamente moldado pelas teorias do Estado chamado Novo. Eu era pela miscigenação. Pela assimilação. Agora continuo a ser pela assimilação, mas ao contrário, percebes? 4.000.000 de negros é que têm de assimilar 200.000 brancos em Angola. Ou eliminar. Não é isso? Essa é agora, mais ou menos, porradinha daqui, marrada de acolá, a minha opinião.
    Mas na primeira fila dos nossos adversários, Lúcio, teremos até os nossos irmãos, os nossos Pais. Não acreditas nisso? Pois digo-te que é verdade. Uma vida inteira a pensar em moldes de paternalismo e sem vir a Paris, não pode dar outros frutos. Podes disso ter a certeza absoluta. Há um fascismo doentio em Angola, um fascismo que se manifesta contra certas atitudes que o negro toma e que agora compreendo. Como aquela dos panfletos em “quimbundo”. Agora compreendo. E até - vamos lá - estou inteiramente de acordo com eles. O Orlando, a Alda, porém, já não pensam como eu. Porquê? Estou ainda em evolução, mas reconheço que a tendência é muito mais para vos ajudar do que para ser franco atirador, cruzar os braços ou ajudar o Estado chamado Novo. Compreendes o que quero dizer Lúcio? Porque raio é que temos tantos quilómetros entre nós? Porque raio é que não havemos de poder falar, com gestos, com frases, com bilhar, café? Já é ter azar. Temos de escrever o dobro para dizer algo que fique. O que te posso dizer é que a tua carta é muito moderada. Vejo-te sem paixão, sem me magoares, dando voltas para me dizeres certas coisas que eu sinto que tenho de ouvir. Não tenhas receio, Lúcio, entra duro. Aleija! Eu preciso de sentir um “abanão”. Paris já mo deu e grande, aliás. Foi uma sacudidela. Tremenda. Maravilhosa. Eu sei que em Angola vão relacionar a minha presença em Paris com a do Kruchev. Mas marimbo-me. E gabo-me de poder ter tido a felicidade de ter assistido a isto. Vi os grandes repórteres internacionais trabalharem e confesso que aprendi muito. E não pôde escrever nada porque é escusado. Fiquei parvo com o recortes que mandaste. Principalmente, não conhecia a tal circular à Imprensa Portuguesa. Nem o trabalho apresentado à Conferência dos Povos Africanos. Muito bem, Lúcio, acho o trabalho sério e honesto. Agora é toda uma caminhada difícil que vos espera. E a minha opinião sobre o Adriano Moreira - que aliás não conheço - é a mesma e mantém-se: o tipo é secretário de estado e está tudo dito. Foi nomeado para a vaga do que foi governar Angola. Percebes?
    O caminho a seguir? Eu tenho de pender para um lado. Mas vou sedimentar, reflectir, estudar sobre aquilo a que resolvi chamar a “minha experiência de Paris”. De “trincheira”. Depois de algum tempo é provável que atinja algum ponto, alguma solução, que tudo se ilumine no meu caminho. Vou tentar. Estou a tentar esclarecer-me. A ver vamos. Contra vocês? Acho que pelo menos, no ponto em que as coisas estão, eu tenho de ser para vocês. Embora não esteja preparado. Confesso que não me acho preparado. É verdade. Só daqui a algum tempo. E entretanto terei de ler muito, estudar bastante e contactar o máximo com tipos como os que indicas - Castro Soromenho incluído. Vejo conscenciosamente os exemplos que me dás do caso de Marrocos e dos comunistas portugueses. Tudo isso são coisas motivadas por situações anormais. O caso dos comunistas portugueses por serem um partido fora de lei em Portugal. E nessa situação tem que aceitar toda a merda que lhes apareça. E no caso de Marrocos uma independência precoce. Que terá de ser parecida com a nossa, no futuro angolano. Vejo também com atenção o caso argelino. Apontas-me tudo com uma certa precisão matemática que demonstra muita preocupação nas cartas que me escreves. Eu estava mais ou menos dentro desses dois assuntos - o de Marrocos e o da Algéria - já porque o Brotas esteve recentemente em Marrocos e contou-me isso mesmo que tu escreveste na tua carta, já porque tenho falado com muitos tipos argelinos que andam a estudar aqui em Paris. Isso de Marrocos - a tal burguesia - é o que se vai passar em Angola, pois há grandes fortunas acumuladas por tipos do café, sisal, etc que depois, com bandeira da independência tentarão continuar a dirigir a coisa em moldes de exportação… para a Metrópole.
    Eu sei o que é que vocês querem. Mas ainda não sei o que quero. Por isso vim a Paris. E ainda que não tenha encontrado o que queria, concretamente, pelo menos vi o que não queria. E assim, já posso novamente voltar atrás e retomar um caminho certo pois que - eu andava perdido. Andava a perder o melhor do meu esforço em coisas inúteis. Inclusivé no próprio jornalismo. As cartas que escrevi ao Geral foram ditadas pelo subconsciente. Estavam latentes. Eu nem sempre as pensei. E saíram, tateando, às cegas, pelo meio da escuridão. Eu acho que me iluminaram foi a mim próprio. Foram elas que me mostraram uma força que eu tinha nas mãos e não sabia aproveitar em fins úteis. Construtivos Humanos. Faço-me entender? A utilização dos meus esforços tê-lo-ás, digo, tens-me - tu e os teus companheiros - às vossas ordens. Para tudo o que necessitar. Sem me esconder, nem ter medo que em consequência disso me venham a pisar o rabo. Porque afinal, embora me perca nos pormenores, nas linhas gerais penso como vocês. Independência política imediata. No prazo de cinco anos. Senão, Lúcio, Angola morre asfixiada. Ou afogada. Em sangue. A evolução de um tipo desordenado como eu, sozinho, é difícil. Esta necessidade de vir a Paris tu não a entendes? Não compreendes agora? Tentarei evoluir e acompanhado de ti, de longe e apenas e com todas as limitações inerentes. Dentro de Portugal suponho, poderei ser-vos muitíssimo útil. Aliás, fico vaidoso, só de pensar que tenho contribuído de algum modo para vos ajudar. Orgulho-me disso. Se é essa apenas a contribuição que querem de mim, contem com ela indefinidamente. Embora eu pense que possa fazer algo mais. Nem que seja sozinho. A Associação dos Naturais de Angola - onde meia dúzia de africanos muito espertos “se governa” à grande, é de facto uma coisa abúlica e letárgica. A LNA (Liga Nacional Africana - a que o Melo do Abc pertenceu em tempos, vai morrendo devagarinho à força de comissões administrativas. E pensar eu - como lí pela primeira vez em Paris - que no II Congresso Pan-Africano de Londres (1923) houve uma sessão em Lisboa onde um grupo dessa Liga se distinguiu… e onde nessa data longínqua já se falou no tão actual problema do trabalho escravo de São Tomé…
    Vou entrar na nona página e são 4 horas da manhã e estou rebentado mas satisfeito. Desabafei. E logo, contigo. Não te esqueças que parto para Portugal a 1 ou 2 de Abril e portanto deves escrever para lá se tencionas fazê-lo em breve. Mas primeiro aguarda os livros que eu te mandar e a direcção de Coimbra. Fixe? Entretanto para algo urgente escreve para a American L. Agency. Fixe?
    Continuarei em contacto contigo e difundir entre tôda a gente séria a papelada que enviaste. Depois dos amigos de Lisboa mandarei ao Mário Alcântara Monteiro por intermédio de um amigo que tenho nos correios de Benguela e que é muitíssimo sério - o Etardo Palhares da Costa, irmão do Miáu e que na certa não dará com a língua nos dentes, até porque é um revoltado com o sistema, pois não passa de 3º oficial há uma data de anos e já viu incompetentes e azelhas passarem por ele e serem promovidos por serem… brancos.
    Quanto ao Margarido está descansado. Não voltei a contactar com ele depois da tua primeira carta. Lembro-me no entanto de lhe ter dado as ampliações daquelas fotos que te mando - as da mandioca - a troco de um livro que no momento me interessava e que estava esgotado - o do Aquilino Ribeiro. Esgotado não é o termo. Expropriado fica melhor.    
    Claro, ninguém de Portugal sabe onde paras. Já te contei o episódio da Helena tua prima da Figueira. A família está “bera” comigo por causa de eu não dar a tua morada. Mas estou-me nas tintas e embora “chateado” comigo compreendem perfeitamente a situação e há mesmo uma evolução nas suas mentalidades. Evolução é mal dito. Melhor ficará, uma conformação perante os acontecimentos. Todos preferimos ver-te - isso é opinião unânime! - em Marrocos, China, Japão, o raio, do que nas masmorras dessa senhora prostituta chamada PIDE. Direi aos teus de Nova Lisboa apenas que foste para Guiné como indicas. Ah! E darei a tua morada de Liège já que assim o pedes, para se corresponderem contigo. Nada de nomes no envelope de fora. Ciente. Eu esqueci-me desse pormenor um dia destes. Mas lembro-me de ter posto Lúcio Rodrigo Barreto e ter deixado o Lara no tinteiro. Continuarei a mandar-te tudo quanto arranjar que te interesse. Fixe? Interessa-te por exemplo o «Portugal Democrático»?
    Dou-te razão também no problema do Brasil. Como o pões, é verdadeiro. De facto Angola nunca poderá evoluir como o Brasil. Aliás essa era uma das minhas idéias de base um dos meus sonhos ridículos… que se desfez em Paris! Fico ciente de que estou nas “reservas” a trabalhar a bola. Mas sabes bem, porque já jogaste a bola, qual é a aspiração dos tipos das reservas? Sabes, não é? É que pensam que são uns Zizinhos e não olham para os seus defeitos, querem é ser lançados logo nas primeiras, mesmo que isso redunde depois num fracasso para eles e para a equipa. Mas com a tua ajuda - os teus conselhos por carta e sujeitos a todas as dificuldades de expressão e distância - suponho que poderei efectivamente dentro de uns anos ajudar-vos decisivamente. Isto é trabalhar bem a bola e dar aos tais passes de morte que vocês precisam os avançados, de receber, dentro da grande área. Efectivamente posso vir a ser um grande elemento. Preciso é de fazer um ou dois campeonatos nas reservas. Compreendo perfeitamente o que quizéste dizer com a “gíria” do futebol…
    Vou terminar. Não sem antes te pedir que abraces a Ruth e beijes o Paulinho. Não sem antes te mandar um grande abraço por estas horas de intenso – embora distante e epistolar – convívio espiritual.
    Recebe um grande abraço. Vou fazer tudo o que me pedes e como pedes. Está descansado. Conta sempre comigo. Procurarei todos os amigos que indicas. Recebe um grande um longínquo e apertado abraço do primo muito e muito amigo, como dizia o meu Pai e como a gente fazia na Aurora.
KUÁTA – PÈKA. Cambariangue.
Ernesto

[Manuscrito:] P.S. Goza a “posição” do tio Avek e como ele não gostou da 2ª carta - vês?
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Ernesto

Carta de Ernesto Lara Filho (Paris) a Lúcio Lara (Casablanca).

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