Carta de Vasco Martins a Lúcio Lara

Cota
0012.000.045
Tipologia
Correspondência
Impressão
Manuscrito
Suporte
Papel comum
Remetente
Vasco dos Santos Martins
Destinatário
Lúcio Lara
Locais
Data
Idioma
Conservação
Bom
Imagens
8

Lx 27/4/60

Caríssimos

Estou de facto há algum tempo sem vos escrever, mas porque enviei notícias de viva voz. Recebi agora a carta datada de 19 de Abril, que muito agradeço. Sei que vocês vão todos bem e o Paulo está um tipo bestial. A continuação da boa saúde.
Sempre que puderem, mandem informações do vosso trabalho, até mesmo para a revista, onde há dias chegou um envelope recheado. Isto tem interesse até por uma questão de informação nossa.

Não me lembro se cheguei a dar resposta a várias coisas duma carta anterior. Por isso vou repetir. Dessa vez cheguei a receber os 100 escudos e também várias fotografias. O livro do Dr. Ávila Azevedo é que não foi possível arranjar. O João Manuel prometeu voltar a enviar os recortes.

A direcção do G. Teixeira é: Maison du Cambodge - 27, Boul. Jourdan - Paris XIV. A do Carlos, nova é: Av. Berna 48 - 5ºE.
O assunto das traduções ficou em águas de bacalhau. Deixei de pensar nele. Após duas conversas com o Magalhães, em que ele falava muito e não decidia nada, desisti. Em primeiro lugar não tenho feitio para andar atrás das pessoas dessa maneira, e depois tenho mais em que pensar. Por outro lado, isso não me resolvia qualquer problema. Podia dar algum dinheiro, mas o que eu preciso é de uma situação mais estável que permita orientar a minha vida. Espero que ela não efective dentro em pouco. Senão, estou tramado.

Há muito tempo que não tenho notícias do A. M. da Silva, a não ser pelo pai que encontro uma vez por outra. Não lhe tenho escrito e ele também não. Sei que já é pai. Se quiseres a sua morada, manda-me dizer.

Agradeço imenso a lembrança. Essa pequena chorona é um encanto. E tão mal compreendida pelo marido… Pobrezinha!
Dentro de pouco tempo seguirá a última revista e um livro. Este é do Comte Moreira de Campos. Pensei que, apesar de ser muito mal escrito e de interesse relativo, tem alguns elementos que servirão para a história dessa terra. Foi apreendido cá.

Morreu o pai do Eduardo. Ontem foi também o enterro. Dum irmão do Poppe, o Eurico, com 32 anos, vítima duma leucemia, um pouco mais de oito dias.

Há mais um asilado político: O Dr. Sebastião Ribeiro (o do livro “Confusão” e outros) na legação da Colombia. Ia ser julgado em breve. Os outros dois asilados, nas embaixadas de Cuba e Venezuela, continuam na mesma. Parece que o Salagui(?) tem birras e não os deixa sair mesmo que isso leve a corte de relações diplomáticas. Já devem ter ouvido falar na morte do cap. Almeida Santos. Atribuída, de princípio, à PIDE, tudo leva a crer, agora, que a versão da Pol. Judiciária não é falsa, pelo menos, pelo menos nas suas linhas gerais. É certo que a PIDE não desmerecia essa atribuição. Seria simplesmente mais um para a lista. Ainda há muita gente que não acredita que ele tenha sido morto pelo Valente e pelo cabo. Quanto a mim, isto é por pura teimosia. As coisas devem ter passado assim, apesar dos pontos obscuros que existem, sobretudo os motivos de liquidação. É claro que este caso está sendo, e vai continuar a ser, explorado ao máximo pela situação. A “Voz”, “Diário da Manhã”, Emissora e Televisão, acusaram logo de princípio o partido comunista, fazendo essa grande história com o tiro na nuca que aliás não existia (segundo a P. J.). Agora adaptaram a história dizendo que o Valente e o cabo são comunistas. Enfim, uma coisa que não veio nada a calhar.

O panorama político português encontra-se sem modificações sensíveis. Enquanto a população de XXX atira com o P. Rhee de cangalhas, isto aqui continua nas calmas. Parece uma terra de capados. É certo que foram presos cento e tal tipos de Aljustrel, é certo que todos os dias há julgamentos, é certo que há muita gente presa. Bolas! Mas isto passa-se assim desde há não sei quantos anos.

Não ouvi falar na história da conferência do delgado com o Fidel. No Brasil andam às turras uns com os outros, parecendo que não têm mais nada que fazer. O Manuel Sertório vê-se às aranhas com aquela malta. É à imagem e semelhança das velhas questões daqui. Fulano está mal com A, A diz mal de B, este escreve cartas insultando cicrano, e acusam-se de comunistas uns aos outros. Entretanto o Zé Povinho continua a aguentar.

A vida escolar tem-se ressentido da incerteza que me encontro sobre a questão de emprego e vida futura. Enquanto não criar uma maior estabilidade neste aspecto não tenho pachorra para nada. A meio de maio tenho a 2ª freq. De inorgânica. Na 1ª não estudei nada de jeito, mas tive 12 (à custa do que já sabia). Quero ver se estudo agora umas coisas para a dispensa (já comecei). A cristalografia deve ter ido ao ar. Não sei ainda o resultado, mas é fatal.

A Gabriela está boa e manda muitas saudades para vocês. Anda agora atrapalhada com a tese e licenciatura que vai fazer em Julho.

A última vez que vi o Soromenho foi no enterro (há umas semanas) do Arnaldo Graça, rapaz médico, da nossa idade (mais da tua) que morreu num desastre de automóvel. É possível que também o conhecesses ou, pelo menos, tenhas uma ideia. Ele ia sozinho no carro, de noite, na estrada de Sintra, não se sabendo como se deu o desastre, pois não havia quaisquer sinais de derrapagem ou travagem. Pode ter sido adormecimento, mas pensam também em suicídio, porque parece que ele fizera já duas tentativas.

Agora verifico que esta carta vai cheia de desgraças. E já está um enorme testamento.

Enquanto este vosso amigo vos for escrevendo uma cartinha de vez em quando já não é nada mau, do ponto de vista pessoal. Vê lá se facilitas esta felicidade não sobrecarregando muito este aristocrático baixo. De qualquer modo, vai sempre dizendo como seguem os teus estudos.

Muitos beijinhos para toda a família.
Do Vasco

Carta de Vasco Martins (Lisboa) a Lúcio Lara.

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